Como o presidente corrói a liberdade de imprensa no Brasil
A ONG Repórteres Sem Fronteiras, que milita pela liberdade de imprensa em todo o mundo, lançou uma campanha publicitária crítica a Jair Bolsonaro, representado sem roupa. Nela, a ONG mostra a "verdade nua" dos mortos da Covid, tema que o governo busca esconder.
A
campanha é bem-vinda. Mesmo antes e independente da pandemia, Bolsonaro já era
hostil à imprensa livre. Xingou e caluniou jornalistas e usou —ou ao menos se
gaba de usar— verbas do governo como arma para premiar veículos aliados e punir
adversários.
Um
subproduto dos ataques verbais diretos são agressões verbais e físicas contra
jornalistas. Uma sociedade em que parte da população, por uma adesão servil ao
presidente, sai de seu caminho para hostilizar ou infernizar jornalistas vistos
como "inimigos" do regime não é uma nação com liberdade de imprensa
plena.
Durante
a pandemia, Bolsonaro também fez por merecer. No início, acusava a
imprensa de aumentar a ameaça da pandemia. "No meu entender, muito mais
fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia
propala ou propaga pelo mundo todo", disse em março.
Quando ficou claro que a crise era grande e o Brasil estava despreparado, tentou bagunçar o debate divulgando, não o número de mortos, mas o de curados. Assim é fácil! Os homicídios estão em alta? Basta celebrar todas as pessoas que não foram assassinadas. Depois de problemas na divulgação dos dados oficiais, coube à "malvada" imprensa tomar para si a responsabilidade de publicar os números diários de mortes e contaminações com transparência e agilidade.
Para
Bolsonaro, não existem problemas reais; apenas de comunicação. Reduzir
o contágio, adquirir uma vacina eficaz para o coronavirus não são medidas
importantes. O importante é persuadir o eleitorado de que tudo vai bem. Falar
dos vivos, promover a cloroquina. E quem cobra prova de eficácia é tratado como
inimigo. O governo segue empurrando seu "tratamento precoce" (um
coquetel de cloroquina e outros remédios) goela abaixo do Brasil, enquanto
permanecemos acima das mil mortes diárias. O crime tem sido devidamente
registrado pela imprensa.
Perseguição
direta e indireta é uma maneira de prejudicar a liberdade de imprensa.
Desinformar o público e melar o debate com tanta fake news que já não se sabe
mais o que é verdade e o que é mentira, também. Estamos ainda longe do nível de
repressão à imprensa de uma Cuba ou Venezuela, mas a deterioração é
preocupante.
Os
riscos para a imprensa num país como o nosso são dois: o primeiro é o de se
aliar ao poder da vez, ceder às pressões do dinheiro e da proximidade com os
poderosos. O segundo é o de, reagindo aos ataques do governo, tornar-se
militante contra ele, retorcendo cada notícia para que desabone o presidente.
Embora o primeiro seja claramente o pior, ambos se desviam da missão maior do
jornalismo: a busca da objetividade, de modo a municiar o debate público com
informações relevantes e verdadeiras.
Nesse
contexto, é um privilégio fazer parte da Folha de S. Paulo, que completou 100 anos no
dia 19. Em sua primeira encarnação, como Folha da Noite, chegou a ser
tirada de circulação pelo presidente Arthur Bernardes. Eleita como uma das
maiores inimigas de Bolsonaro, e
com jornalistas seus ativamente perseguidos por gângsteres da milícia federal,
continua fazendo jus à sua vocação de espinho na carne do poder. Bolsonaro é
moralmente incapaz da verdade. Todos já sabem disso; o rei está nu. Cabe à
imprensa nem tapar suas deformidades nem aumentá-las; basta mostrar a verdade
nua e crua.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
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