terça-feira, 26 de outubro de 2021

Carlos Andreazza - O próprio Daniel Silveira da Faria Lima

O Globo

Está completo o processo de radicalização de Paulo Guedes. Encontrou ali, no catalisador de ressentimentos do bolsonarismo, as condições para o pleno exercício de sua natureza. A dinâmica dessa relação é perversa. O ministro seria alvo, segundo ele próprio, da política. Seria a política, esse ente difuso, a lhe interditar o trabalho; a operar por matá-lo.

Mas o que será essa política, que criminaliza, senão o próprio Bolsonaro, que venera? Guedes dissimula — também para si — a identidade de seu senhor. Não é bonito o lugar em que se coloca. É consciente que o faz, contudo. Há confiança no trato; a satisfação segundo a qual, ao aperto do couro, seguir-se-á o relaxamento. A retomada do ar. Prova de prestígio. Um “ele me deixa respirar, afinal”. O humilhador que se junta ao humilhado para ouvi-lo explicar — dando-se nota oito — por que rasteja; e que ri ante a perdição do envergado.

É o presidente quem age para subjugar o ministro; que, no entanto, sente-se protegido pelo estrangulador; que, depois de lhe impingir mais um afogamento, leva-o a ver passarinhos.

Guedes, humilhado, é grato ao humilhador; porque a humilhação não lhe terá custado o cargo, assento caro ao ressentido que enfim tem a vez que o establishment lhe negava. Gratidão que expressa na forma adesista de radicalização.

A leitura da radicalização do ministro é bom ensejo para analisar a tal moderação de Bolsonaro. Ele não baixou o tom. Apenas fez girar a roleta dos inimigos. Voltou a atacar vacinas; que, não sendo ministros do Supremo, não podem reagir. A moderação por falta de respostas. Serviu-lhe. Precisava de alguma descompressão para que se conformasse o sistema que imporá ao Orçamento de 2022 todas as cláusulas do contrato que firma a sociedade do governo militar com Arthur Lira.

Bolsonaro ora evita confrontos de modo a que se assentem os arranjos que, para muito além do novo Bolsa Família, garantirão bilhões — aberta a capota do teto conversível de gastos — à engorda dos militares, ao bolsa caminhoneiro, ao fundo eleitoral e, sobretudo, às emendas do relator, onde se abriga o exercício do orçamento secreto. A isso se presta Guedes. Não a ajudar os pobres. Mas a manipular a urgência da miséria para abrir fundos destinados a bancar as campanhas de seu dominador e associados.

E por que precisaria o presidente radicalizar neste momento decisivo para seu futuro, se pode terceirizar a função a seu ministro da Economia?

O apoiador fundamental de Bolsonaro é essencialmente antiliberal. Despreza o que Guedes representa. Um sujeito que, condicionado pela mentalidade autocrática, considera reformas do Estado, equilíbrio fiscal etc. conjunto avesso ao controle populista do poder. Para esse tipo, ver o capitão submeter o símbolo liberal brasileiro é o gozo.

Bolsonaro, enquanto — sob formulação de Guedes — azeita a máquina com que competirá em 22, entrega prazer aos seus com Guedes catando liberalismos para justificar a forma submissa como flexibiliza limites outrora ditos intransponíveis.

Há muito escrevo sobre o processo — acelerado pela imposição da pandemia — de troca de pele de Bolsonaro, pelo caminho ficando as capas com que se revestiu o estelionato eleitoral de 2018. A carcaça do combate à corrupção já caíra. E a instrumentalização bolsonarista da peste — paraíso para a forja artificial de inimigos — já expusera a impossibilidade de um projeto reformista liberal, mesmo que houvesse competência, prosperar sobre um chão de instabilidades promovidas pelo próprio presidente.

Guedes era a fachada, o agente que camuflava, pelo tal compromisso reformista, o que seria — independentemente de qualquer privatização — adesão ao bolsonarismo pelos danieis-silveiras da Faria Lima. Isso mudou. Guedes não apenas nos informa que sabia — e aceitou — ser essa fachada; mas que a fachada agora caiu. E que foi derrubada por ele mesmo — o próprio Daniel Silveira da Faria Lima.

Não há uma ala política contra a qual lutaria no governo. A ala política é Bolsonaro — e a ela serve, bem entregue, Guedes; talvez, aí sim, temeroso de que, mesmo assim, perca a cadeira. Foi o ministro quem falou nas opções para viabilizar a farra orçamentária dos joões-romas: ou a licença para gastar fora do teto, ou a forma puxadinho para recalcular a altura do pé-direito fiscal.

Nada exprime melhor a radicalização de Guedes do que a mentira que tenta armar uma oposição entre responsabilidades fiscal e social; como se o Auxílio Brasil, ampliando a base de beneficiados e pagando mais, não pudesse caber sob o teto. Poderia.

Fez-se uma escolha, entretanto. Para poder pedalar com os precatórios. A de matar o Bolsa Família, programa de sucesso, de natureza permanente, e implantar um projeto sem estudos, de caráter provisório, a viger somente no ano eleitoral; que já contratou, em nome da reeleição do mito, a inflação que comerá o que a sensibilidade social de Bolsonaro oferece aos pobres, aqueles para quem dólar a cinco reais seria bom — né, Guedes?

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