segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Fernando Gabeira - Para chorar no banheiro

O Globo

Quando saiu o relatório da CPI da Covid, Flávio Bolsonaro disse que seu pai o receberia com uma gargalhada típica do Bolsonaro. Não há graça nenhuma em ser acusado de crimes contra a humanidade, algo tipificado pela Convenção de Roma e adotado pela ONU.

Depois daquela frase “minha vida aqui é uma desgraça”, Bolsonaro confessou, recentemente, que chora no banheiro. Esconde da mulher, que o acha o machão dos machões e, estupidamente, perde uma chance de chorar no ombro dela. Mas o que esperar do machão dos machões?

O único consolo que Bolsonaro pode encontrar nessa acusação é a chance de responder a quem o chama de genocida: “Alto lá! Genocida não, apenas cometi alguns crimes contra a humanidade”.

Embora tenha explicado aqui, usando até Freud na sua visão de negacionismo, até hoje não entendo bem por que Bolsonaro e tantos seguidores se recusaram a dar importância ao vírus.

Creio que houve nessa negação muito de guerra cultural: se os adversários se preocupam tanto com o coronavírus, uma maneira de enfrentá-los é desmistificar o perigo.

O ex-ministro Ernesto Araújo via na pandemia um perigoso processo de dominação autoritária internacional. O próprio Bolsonaro insistiu no tema da liberdade e, na célebre reunião de abril de 2020, chegou a desejar a luta armada contra as medidas de distanciamento social.

Existe uma ponta de paranoia. É como se os adversários, não os tendo dominado por argumentos, adotassem agora teses científicas como a preservação da vida para conquistar o que sempre aspiraram: roubar sua liberdade.

Tenho certo escrúpulo de avançar nesse caminho, pois a distância da realidade, nas mentes perversas, pode funcionar como um álibi.

Não se julga um crime contra a humanidade a partir de uma avaliação psicológica. O que importa são mais de 600 mil mortos e todos os mecanismos de negação oficial responsáveis por esse número escandaloso.

Quando houver o julgamento e puder escrever sobre ele, pretendo levar em conta todas as dimensões que me preocupam. Hannah Arendt, no julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, nos contemplou com uma importante visão da banalidade do mal. Citei seu argumento no Tribunal Russel, em Roma, quando falava da tortura e torturadores no Brasil.

Mas, agora, sinto-me diante de uma situação muito diferente. Constatei inúmeras situações em que o negacionismo de Bolsonaro se manifestava em pessoas comuns. Em muitas delas, tive a sensação de que temiam reconhecer a gravidade do vírus porque isso seria se render ao outro. Era como se houvesse dentro delas uma espécie de pavor em concordar, como se fosse realmente uma ameaça à própria identidade.

No caso de Bolsonaro, além de negar porque o vírus ameaçava seu governo, ele sempre ressaltava o comportamento de maricas de quem dava muita importância à pandemia.

Sua imitação dos movimentos de quem sente falta de ar, além da crueldade que encerra, era também uma espécie de crítica ao que ele considera frescura: agonizar por falta de oxigênio.

Mesmo que seja condenado, Bolsonaro jamais reverá radicalmente seus gigantescos erros na abordagem da pandemia. Aceitar as evidências é algo mais perigoso que perder o governo ou mesmo ir para a cadeia.

Na verdade, há um tipo de angústia que define seu comportamento e que, por sua profundidade, é mais ameaçadora que a própria falta de ar.

Bolsonaro está condenado a não mais tomar um caldo de cana na esquina, a chorar longe do ombro da mulher, a responder por crime contra a humanidade — tudo isso porque não conseguiu decifrar o próprio enigma.

Quem vive tão enfaticamente na escuridão não poderia ter nos oferecido outra coisa senão um governo de trevas.

 

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