Valor Econômico
Ex-ministro simpatiza com a ideia de incluir compromissos adicionais em meio ambiente e direitos humanos no acordo com a UE
Já passava da meia-noite de sexta-feira
para sábado, em Madri, quando Celso Amorim voltou para o quarto do hotel,
depois de um dos seus últimos compromissos acompanhando o ex-presidente Lula no
périplo pela Europa, e aceitou conversar com a coluna para fazer balanço da
visita, além de oferecer pistas do que poderia ser a política externa do
eventual governo 3.0 do petista.
A conversa com Amorim ocorreu antes da
entrevista dada por Lula a “El País”. Nesta, o ex-presidente comparou Daniel
Ortega, ditador nicaraguense que pôs oposicionistas na prisão, com Angela
Merkel, primeira-ministra da Alemanha, que ficou no poder por 16 anos, eleita
democraticamente. O comentário veio dias depois de uma já desastrada nota do PT
sobre a eleição na Nicarágua.
Primeiro, o ex-chanceler quis pontuar como
gestos e formas, na diplomacia, são relevantes. Pedro Sánchez, na Espanha, recebeu
Lula por uma hora e meia. Josep Borrell, o alto representante da União Europeia
para Negócios Estrangeiros, suspendeu a folga e foi para o gabinete em pleno
domingo só para encontrar-se com o brasileiro. Em Paris, uma audiência de 45
minutos estava prevista com Emmanuel Macron.
Surpreendentemente, o cerimonial do Palácio do Eliseu lhe avisou que os planos haviam sido alterados. “Em 60 anos de diplomacia, quase isso, nunca vi - ou não me lembro de ter visto - um ex-presidente e potencial candidato ser recebido assim em algum país do mundo.” Em seguida, Amorim desfez a suspeita de que Lula e os líderes europeus gastaram saliva para falar mal de Jair Bolsonaro, de sua postura anti-máscara e pró-atraso na vacinação, do fracasso de sua política ambiental. “Não foi esse o tom. Se havia queixas, elas foram implícitas. Não foi conversa miúda. Conversaram só sobre assuntos substantivos.”
Quais exatamente? Mudanças climáticas,
governança global, o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia,
se o planeta já vive ou caminha para uma guerra fria 2.0 a partir da crescente
rivalidade Estados Unidos-China, o papel que Europa e América do Sul podem
desempenhar diante desse novo contexto. Para o ex-chanceler, a grande mensagem
ficou clara: “Não nos esquecemos do Brasil, e queremos o Brasil de volta”.
De volta aos fóruns globais, como liderança
regional, reconhecido pelos parceiros como apto para construir consenso
diplomático. O próprio Amorim costuma explicar o que significa esse exercício,
o de buscar espírito de consenso nas negociações internacionais, com uma
história de seus tempos como embaixador em Genebra, junto à OMC, no governo
Fernando Henrique. Havia uma discussão sobre patentes. Para romper o impasse,
resolveram fazer uma reunião só entre os países mais influentes, a portas
fechadas.
No grupinho, os suspeitos de sempre - EUA,
UE, Japão, Índia, Brasil. Amorim freou o começo da reunião. Queria ali alguém
da África. Achava justo, para decidir sobre patentes de medicamentos, incluir
uma nação do continente mais pobre do planeta. Até que o embaixador de um país
africano o cortou e agradeceu: “Não precisa. Se o Brasil está na reunião, nós
nos sentimos representados.” Não por absoluta confluência de interesses, mas
pela capacidade de ponderar, de empenhar-se por soluções equilibradas, de falar
em nome dos emergentes, de ouvir e ser ouvido também entre os ricos. Isso não
acontece mais.
O principal auxiliar de Lula para política
externa, chefe do Itamaraty por oito anos (2003- 2010), disse apreciar o termo
em espanhol que tem ouvido de seus interlocutores sobre essa ausência do país
nas grandes discussões: “el hueco brasileño”. Acha imprescindível, por exemplo,
que se ressuscite a Unasul - comunidade dos países sul-americanos, que entrou
em coma desde a saída formal do Brasil e um punhado de outros países, em 2019.
Vê uma carência de liderança na região. Afirma bater palmas para o governo Joe
Biden por sua atitude em relação ao clima e aos estímulos econômicos, mas
acrescenta: “É muito bom que os EUA tenham voltado ao mundo, mas não entenderam
nada do que está acontecendo na América Latina”.
A partir daí, Amorim fez breve análise do
cenário global e como o Brasil se encaixa nele. Enfatizou que falava em caráter
pessoal e não como porta-voz de Lula. Tudo bem, mas sabe-se que poucas vezes na
história presidente e chanceler tiveram tamanha sintonia. Continuam bastante
próximos. Isso torna suas falas mais do que expressão de um diplomata
aposentado. Saúde, mudanças climáticas e desigualdades sociais são temas que
preocupam Amorim. Para ele, respostas efetivas para esses três pontos exigem
cooperação e governança. E quem faz isso no mundo atual? “O G20 não é um órgão,
é um fórum, mas qual é a cadeia de transmissão do que se decide lá? Como fazer
valer suas orientações no FMI, na OMS ou no Banco Mundial?”, questiona.
Há necessidade de reforma da ONU, mudanças
em seu conselho de segurança, ampliação do G20 com pelo menos dois africanos,
necessidade talvez até de conferência internacional nos moldes das negociações
que resultaram no Tratado de Versalhes ou nos acordos de Bretton Woods, desta
vez para repactuar o sistema econômico.
Em um mundo dividido entre duas grandes
potências, há enorme grupo de países que não precisam escolher entre EUA e
China, que podem aproveitar o que cada relação tem de melhor. A América do Sul
e boa parte dos europeus estão nessa situação, daí, importância de associação
estratégica Mercosul-UE, que não se limite a comércio, “que é absolutamente
relevante, mas não é tudo”.
Amorim tem diversas ressalvas ao acordo de
livre comércio entre os dois blocos, fechado em 2019 e até hoje não assinado.
“Precisa de retoques.” Na avaliação dele, parece ter havido ganho insuficiente
em cotas agrícolas e abertura acelerada demais para bens finais no Cone Sul, o
que pode agravar o processo de desindustrialização. Teme que as concessões
tenham sido feitas em meio à impaciência brasileira e à ansiedade argentina de
usar o acordo como parte da campanha para reeleger Mauricio Macri.
Amorim simpatiza com a ideia de incluir
compromissos adicionais em meio ambiente e direitos humanos no acordo, tomando
a precaução de que haja salvaguardas para não torná-los pretexto para
protecionismo. Por outro lado, fala sem entusiasmo de uma possível entrada do
Brasil na OCDE, tão buscada por Michel Temer e Bolsonaro. “Observe que nenhum
país dos Brics é membro da organização, muito menos em negociações feitas às
pressas.”
Outras viagens ao exterior de Lula estão
nos planos. México e Argentina são escalas bastante prováveis. Dos EUA, espera-se
algum sinal para coordenar eventual visita. “Eles sabem onde nós estamos, onde
nos procurar”. A deixa está no ar.
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