O Estado de S. Paulo
É preciso pensar no povo, disse Bolsonaro, defendendo corte de impostos indispensáveis à produção de serviços essenciais
Fazer leis pode ser tão nocivo quanto violar a lei, e até mais, e para tirar qualquer dúvida basta olhar a Praça dos Três Poderes. Conhecida como PEC Camicase, uma das propostas para lidar com o preço dos combustíveis pode custar mais de R$ 100 bilhões ao setor público, segundo a equipe econômica, e com efeito zero sobre a variação dos preços básicos de petróleo e derivados. Incompetência, irresponsabilidade e populismo de quinta categoria são marcas dessa Proposta de Emenda Constitucional e de outras iniciativas para controlar os valores do diesel e da gasolina. Um criminoso pé de chinelo pode prejudicar algumas pessoas. Políticos pés de chinelo, instalados no Palácio do Planalto e no Congresso, podem causar danos gravíssimos ao País e comprometer seu desenvolvimento econômico e social. Cortar impostos de forma voluntarista pode prejudicar funções públicas essenciais, como segurança, justiça, educação e saúde, e os mais afetados serão provavelmente os menos capazes de pagar por serviços privados.
Incompetência é visível, em primeiro lugar,
no diagnóstico errado. É bobagem tratar imposto indireto como causa de aumento
de preço de um produto. Tributos desse tipo, como o ICMS, incidem sobre o valor
básico e compõem o preço final. Não são causas, no entanto, de variação do
preço. Eliminado ou reduzido o imposto, o preço final de hoje será diminuído,
mas voltará a subir, se os custos aumentarem.
Para os políticos, no entanto, combater
aumentos de preços de combustíveis, mesmo de forma errada, pode ser vantajoso.
No Brasil, preços do diesel e da gasolina são especialmente importantes por
causa da enorme dependência do transporte por meio de caminhões, ônibus e
automóveis. O transporte rodoviário de cargas, estimado em cerca de 65% do
total, é bem mais importante que em países com redes mais extensas de ferrovias
e hidrovias. Nas cidades, os sistemas de metrô estão muito longe de competir
com os serviços de ônibus e com os transportes individuais. Mas essas questões
têm pouco destaque na agenda brasiliense.
Há muito espaço, portanto, para o
tratamento superficial dos problemas e para as soluções impróprias e
populistas. Preços de combustíveis dependem das cotações internacionais do
petróleo, da taxa de câmbio e dos gastos com processamento e distribuição dos
derivados. Dependem, também, da concorrência no mercado interno e das
flutuações de oferta e demanda. O valor do ICMS é basicamente uma consequência
desse jogo. Não é causa – vale a pena insistir – da variação de preços.
Que o presidente Jair Bolsonaro ignore
esses fatos, ou seja incapaz de juntá-los num raciocínio coerente, é
perfeitamente plausível. Fora de dúvida, no entanto, é sua preocupação com a
melhora de imagem e com possíveis ganhos eleitorais. Parte dos ganhos pode ser
obtida com medidas demagógicas de efeito imediato. O jogo pode incluir favores
a possíveis aliados, como caminhoneiros, um dos grupos beneficiários
contemplados na PEC Camicase.
O candidato Jair Bolsonaro, então deputado,
apoiou os caminhoneiros, em 2018, quando ocuparam quilômetros de acostamento,
usaram violência para bloquear o transporte de cargas e causaram perdas enormes
à produção industrial, à distribuição de bens e ao varejo. Na Presidência,
tentou logo favorecer esse grupo, pressionando a cúpula da Petrobras contra o
aumento de preço do diesel. O presidente da empresa resistiu e foi removido
quando surgiu uma brecha legal para a substituição. Bolsonaro continuou
empenhado em beneficiar seus aliados, ou supostos aliados, e passou a jogar de
forma diferente, abrindo campanha contra os impostos sobre combustíveis.
Teve ajuda de seus aliados na Praça dos
Três Poderes, os parlamentares do Centrão. Prosperou sem dificuldade a ideia de
mexer em tributos e de criar despesas para caçar votos em troca de benefícios –
defensáveis ou indefensáveis. Para Bolsonaro e para deputados federais, uma
saída fácil foi propor a redução do ICMS, principal tributo dos Estados, num
evidente ataque aos valores federativos. A ameaça estendeu-se às finanças do
poder central. A equipe econômica reagiu. Por enquanto, nenhuma proposta foi
aprovada, mas persiste o risco de novas trapalhadas fiscais.
“Tem que pensar no povo, não no Estado”,
disse o presidente, depois de um passeio de moto, num pronunciamento em defesa
do corte de impostos sobre combustíveis. Ele teria pensado no povo quando
combateu o uso de máscaras, defendeu o uso de cloroquina e se mostrou
indiferente à mortandade causada pela covid19? Teria pensado no povo quando
retardou a compra de vacinas e combateu o seu uso, recorrendo a uma fake news
sobre vacinação como causa de aids? Tanto quanto nessas ocasiões, ele deve
estar pensando no povo, agora, ao defender o corte de impostos necessários a
serviços essenciais. Nada de estranho, até aqui. Ele surpreenderia, mesmo, se
defendesse para valer um corte significativo do fundão eleitoral ou dos bilhões
embrulhados no orçamento secreto de seus amigos do Centrão, fidelíssimos
porta-vozes do povo.
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