O Globo
Há uma lucidez nas férias que ajuda o jornalismo. Às vezes, a distância da correria diária permite um olhar mais agudo sobre o país. As tragédias recentes atingindo negros colocam o combate ao racismo como ponto central de qualquer projeto de futuro. Não precisamos de mais mortes para entender que esse problema pode destruir a Nação, se não for encarado com coragem, obstinação e propostas objetivas. Séculos de violência contra o povo preto nos olham desafiadores.
Não há palavras de repúdio que confortem os
que vivem sob a ameaça constante e perdem pessoas queridas de maneira brutal. O
refugiado congolês Moïse Kabaganbe foi vítima de uma barbárie tão imensa que
nos cobriu de vergonha. Ele era apenas um menino de 24 anos que buscou abrigo
entre nós. A mancha não sairá da nossa bandeira, nada há que apague esse crime
hediondo. Só podemos, diante dele, fortalecer a convicção de que é preciso
resgatar o país do fosso cada vez mais fundo em que estamos. Ver logo depois
Durval Teófilo Filho com o braço estendido, como um pedido de paz, diante do
seu assassino, foi dilacerante. O sargento da Marinha Aurélio Alves Bezerra já
havia dado um tiro no seu vizinho de condomínio. Foi quando, caído, Durval
levanta a mão desarmada. Ele estava apenas tentando chegar em casa. Aurélio
saiu do carro, mirou a vítima caída e deu mais dois tiros. O sargento quis
matar. Aos 38 anos, Durval foi executado por ser negro e seu vizinho achou que
ele só podia ser um ladrão. Um ato explícito de racismo que termina
tragicamente. Na sua defesa, o sargento fez alegação absurda. Disse que atirou
“para reprimir a injusta agressão iminente que acreditava que iria acontecer”.
O jovem Yago Corrêa de 21 anos saiu para comprar pão e foi preso. O delegado disse
que Yago “estava na hora errada, no lugar errado”. Graças à mobilização da
família e de moradores da favela do Jacarezinho ele foi solto.
Com quanto sangue mais vamos manchar nossa
bandeira antes de entender que só haverá futuro quando o país encarar seu
racismo? O racismo é inimigo da pátria, que só será pátria se honrar a sua rica
diversidade étnica. Não é tarefa dos negros combater essa violência, é de cada
pessoa e de todos os poderes.
O presidente da Central Única de Favelas e
escritor Preto Zezé, em artigo na terça-feira, na “Folha de S.Paulo”, exprimiu
o sentimento dos negros. “Somos exilados de direitos no nosso país e
perseguidos como inimigos. O cenário inviabiliza qualquer ideia de nação, já
que, devido à cor da pele, somos privados de direitos básicos. E corremos
riscos, pois o imaginário popular está habitado com a ideia de preto como
perigoso.”
Um país assim, que mata negros por serem
negros, que escravizou africanos por três séculos, que nunca teve política de
reparação, que até hoje os discrimina, não pode perder tempo com debate
estapafúrdio. Não há racismo reverso. Ponto final. Os brancos não são ameaçados
por serem brancos. Pelo contrário. Chega de dar espaço a debate falso. A
mentira não é inocente, ela nos afasta do essencial e urgente.
Sempre houve quem lutasse a luta justa no
Brasil. O herói da Pátria Luiz Gama é desses. O filme “Doutor Gama”, de
Jeferson De, no Globoplay, narra uma das suas muitas lições de resistência.
Precisa ser visto. O livro “Avesso da Pele”, de Jefferson Tenório, é outra
recomendação que faço. Nele, o narrador, em diálogo com o pai, vai revelando ao
leitor o cotidiano das feridas que os olhares, as palavras, as portas fechadas
vão impondo ao negro. A pessoa adoece e um dia não aguenta mais. Tenório nos
conta dessa morte lenta, desse cumprimento de uma pena sem culpa e sem
remissão. Por quanto tempo mais o tecido social brasileiro suportará tamanha
covardia?
Gosto dos números, acho que eles são
reveladores, mas prefiro nem levantar aqui estatísticas para mostrar o que é
evidente, a hegemonia dos brancos, a exclusão dos negros. Por natureza sou
otimista. Acredito em políticas públicas e nas decisões privadas para mitigar
problemas sociais. As poucas que surgiram nos últimos anos, como as cotas nas
universidades públicas, ajudaram. As empresas que sinceramente querem mudar
estão avançando. Tudo somado é pouco perto da imensidão da tarefa. Este é um
ano eleitoral. O combate ao racismo deveria ocupar as agendas como uma
obsessão.
2 comentários:
O crime do sargento foi absurdamente pior que o da Barra.
O sargento tem que ser imediatamente julgado, preso e sua mente totalmente investigada. Mas o movimento negro parece pensar ao contrário.
MAM
Ponto para Mirian Leitão.
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