Uirá Machado / Folha de S. Paulo
Para cientista político Jairo Nicolau, mudanças no
país deixam quadro aberto para 2026
Uma mudança silenciosa está em curso na política
brasileira. Quando ela terminar, o quadro partidário lembrará pouco o de alguns
anos atrás. Seu impacto será profundo, a ponto de tornar ainda mais incertas as
projeções para a disputa presidencial de 2026.
"Ela não aparece para nós, pessoas comuns que
acompanham a política, porque a gente está o tempo todo olhando para a disputa congressual, para
petismo e antipetismo", diz o cientista político Jairo Nicolau.
"A gente está o tempo todo olhando para
[Jair] Bolsonaro [PL] versus [Luiz Inácio] Lula [da Silva, PT], mas por baixo está
acontecendo uma transformação radical do quadro partidário brasileiro",
continua.
Fruto de reformas eleitorais aprovadas nos últimos
anos, o número de partidos vai diminuir, e o tamanho
deles, aumentar. Esquerda e direita precisarão se reorganizar, e o centro,
renascer.
Em paralelo, a sociedade brasileira também se mexe:
a população envelhece, o eleitorado feminino cresce, a escolaridade se amplia;
urbanização, desindustrialização e religião avançam. "Quem olha para o
Brasil de 2003 e o de 2023 encontra um país muito diferente", diz Nicolau.
Em entrevista à Folha, ele analisa quais dessas mudanças beneficiam Bolsonaro e explica por que evita o termo "bolsonarismo".
A pesquisa Datafolha mais recente mostrou
que 30% dos eleitores se identificam como petistas e que 22% se dizem
bolsonaristas. Ainda que o bolsonarismo não seja um partido, dá para tratá-lo
como fator de identificação político-eleitoral?
Essa pergunta tem que ser vista com cuidado, porque
isso se mistura um pouco com lulismo. Veja que
o PT teve menos de 13% dos votos para a Câmara dos
Deputados na última eleição. Mas, apesar dos cuidados, o PT de
fato é uma marca, a única força que organizou essa confusão partidária desde a
redemocratização.
Do outro lado, é difícil fazer um equilíbrio
conceitual entre petismo e bolsonarismo. Talvez a pesquisa, numa outra rodada,
devesse testar lulismo, já que estamos falando da potência de lideranças.
Bolsonaro, nos últimos anos, passou por dois testes
eleitorais, quatro turnos, e teve uma votação sempre expressiva. No seu
governo, mesmo nos piores momentos, ele tinha em torno de um quarto ou um terço
da população fazendo uma avaliação positiva. Só que sou muito cuidadoso ao usar
o termo bolsonarismo.
Por quê?
Sem uma definição mais precisa, a gente começa a
chamar todos os conservadores, reacionários, extremistas, todos esses
movimentos de bolsonaristas. Praticamente a direita inteira votou no Bolsonaro,
mas existem diferenças.
Eu tento evitar o termo bolsonarismo e pensar o
Bolsonaro como uma liderança carismática, no sentido weberiano [referência
ao sociólogo Max Weber]. Bolsonaro, para uma parte do eleitorado, tem um diferencial que o torna um político a ser seguido,
por quem as pessoas se apaixonam; um político que uma parte do Brasil admira e
com o qual se comunica.
Mas não temos um corpo teórico mínimo para chamar de
bolsonarismo o que existe para além da pessoa física. Bolsonaro não é como
outros líderes políticos de direita. Ele não tem formação intelectual.
Eu lembro muito do Jânio [referência a
Jânio Quadros, que presidiu o Brasil em 1961]. O Jânio também foi uma liderança
carismática que criou um termo, o janismo. Mas o janismo era o Jânio com sua
capacidade de liderar, de mobilizar as pessoas e atrair uma parte do eleitorado
–e ponto.
O que acontece com esse campo se Bolsonaro for declarado inelegível pelo TSE?
A gente tem que trabalhar com três campos. O
primeiro, por atalho, vou chamar de conservador, uma direita em sentido mais
amplo. Esse campo sempre existiu na vida democrática brasileira, e hoje a gente
tem o Congresso mais conservador desde a redemocratização.
Nessa direita, há políticos que orbitam a liderança
do Bolsonaro, que hoje estão basicamente no PL. E há uma fragmentação de
lideranças, digamos assim, de ultradireita, de movimentos de redes sociais, blogs etc.
Então nem tudo que é direita no Brasil é Bolsonaro. O enigma para 2026, na
hipótese de o Bolsonaro não ser candidato, é se ele vai tentar inventar alguém
do campo dele.
Mas o que está em jogo daqui para a frente é uma
reconfiguração da vida partidária brasileira. Pelo lado da direita, isso vai
depender das ações do Bolsonaro. Nos últimos seis meses, para sorte do governo,
ele foi um líder medíocre. Nem medíocre: ele silenciou. Esse comportamento tirou muito da energia do bolsonarismo.
Nesse cenário, há espaço para o PSDB voltar a
crescer, considerando que foi o partido que duelou com o PT até
2014?
O bolsonarismo destroçou o que a gente convencionou
chamar de centro. Então o PSDB vai ter que fazer um esforço gigantesco de
reorganização para tentar recuperar essa ideia de centro, ou seja, de uma força
política que não se alinha nem com o petismo nem com o conservadorismo.
E uma reestruturação do PSDB passa necessariamente por fusões,
por trazer políticos de outros partidos. O jogo agora é de legendas médias para
cima. Tem que ter 50, 70 deputados. Acabou aquela era em que um partido de
cinco ou seis deputados fazia diferença.
Boa parte dessas mudanças se explica por novas
regras eleitorais, muitas das quais impactaram a disputa de 2018.
Em 2018, a principal mudança foi o fim do financiamento privado.
Isso teve um impacto muito grande na dinâmica da competição. E isso a gente
sente até agora.
Não estou dizendo que a ordem dos eventos tenha sido
essa, mas, diante daquela crise que o sistema político sofreu com Lava Jato, mobilização de rua, impedimento,
relação com o Judiciário... Quando veio o final do financiamento de campanha,
criaram um sistema que beneficiava demasiadamente quem tinha mandato.
Houve uma concentração do tempo de TV, dando aos
partidos menores um tempo minúsculo. Foi uma reforma para proteger a elite
política tradicional contra um outsider; para dar recursos aos atores centrais
daquele momento.
E não deu certo. Bolsonaro quebrou esse sistema.
Essas e outras regras ainda terão impacto em 2026?
Nós tivemos uma regra que começa a afetar a
sobrevivência de pequenos partidos, que foi a cláusula de 1,5% [chamada de
cláusula de desempenho, ou cláusula de barreira], ou seja, partidos que não
tiveram 1,5% [dos votos para a Câmara] naquela eleição perderam recurso do fundo
partidário, perderam tempo de TV.
E veio depois o que eu acho a maior reforma do
sistema eleitoral desde 1945: o fim das coligações. O número de partidos
representados na Câmara, por exemplo, caiu em todos os estados na série
histórica. É um quadro de compactação, e acho que ele vai se
acelerar.
A gente está o tempo todo olhando para Bolsonaro
versus Lula, mas por baixo está acontecendo uma transformação radical do quadro
partidário brasileiro. Quando as pessoas abrirem os olhos, elas vão ver que
sobrou um número muito pequeno de legendas estruturadas nacionalmente.
A gente está num momento de reconfiguração. Ela não
aparece para nós, pessoas comuns que acompanham a política, porque a gente está
o tempo todo olhando para a disputa congressual, para petismo e antipetismo,
aprovação das medidas, o jogo presidencial.
Como essa reconfiguração deve afetar a disputa
presidencial de 2026?
Acho que está tudo muito aberto. O PT é uma força
incontornável. A esquerda não petista tem sofrido muito com esse fortalecimento
do PT. O centro praticamente desapareceu. E, no campo da direita, a compactação
já se deu e pode se adensar ainda mais.
Com o fundo eleitoral, a vida de um político
ficou muito mais fácil, já que ele não precisa pedir dinheiro. Estar num grande
partido significa ter acesso a dinheiro para a campanha; significa ter maior
probabilidade de se eleger. Então não tem mais estímulo para ficar numa legenda
pequena.
Agora, os nomes de 2026, isso vai depender da
sobrevivência política do Bolsonaro como ator eleitoral e vai depender do
sucesso ou não do governo Lula.
No livro "O Brasil Dobrou à Direita: Uma Radiografia da
Eleição de Bolsonaro em 2018", o sr. diz que certas
transformações no eleitorado ajudaram Bolsonaro naquele ano. O que dá para
projetar para o futuro?
O Brasil está passando por um processo de
transformação demográfico e socioeconômico gigantesco nessas últimas duas
décadas: envelhecimento da população, aumento das mulheres tanto no total de
eleitores quanto no comparecimento proporcional, aumento da escolaridade.
Tem também uma revolução religiosa em curso, com o
crescimento não só desse mundo complexo de denominações que a gente chama de
evangélicos, mas também de pessoas que acreditam em Deus, mas não têm
denominação religiosa. Isso sem contar a hiperconcentração urbana, a redução da
população em extrema pobreza, a desindustrialização.
Quem olha para o Brasil de 2003 e o de 2023 encontra
um país muito diferente. Algumas dessas mudanças beneficiam Bolsonaro. O
aumento da escolaridade, por exemplo. Desde 2014, o eleitor de média
escolaridade para cima passou a ser minoritariamente de esquerda.
A metropolização também. O PT continuou perdendo nas
grandes cidades, ainda que não naquela distância acachapante de 2018. Mas o
desafio metropolitano da esquerda não foi resolvido com Lula. O desafio de
entrar na classe média, na nova classe média e nos setores mais escolarizados
também não foi resolvido.
E a questão religiosa?
Em 2018 e 2022, houve uma clivagem no mundo religioso que não tinha
acontecido antes. Ou seja, um candidato concentra um volume de votos
num campo muito acima da sua votação nacional. É preciso esperar decantar, mas
tenho a impressão de que essa agenda cortou direita e esquerda. Há um encontro dos valores da teologia com o conservadorismo
político que talvez permaneça.
São questões mais fundas, que começam nos anos 2010,
com debates sobre identidade, Marco Feliciano versus Jean Wyllys, toda essa agenda identitária,
sexualidade, drogas.
A questão não é contra Lula, não é a corrupção. São
os valores. Talvez seja algo mais complexo do que uma adesão temporária ao
Bolsonaro. Clivagens acontecem na opinião pública. E a esquerda não precisa
mudar os seus valores, deixar de defender certas políticas para ganhar votos
evangélicos. A esquerda vai ter um limite de conquistar uma parte do eleitorado
porque defende certos valores. Isso é totalmente normal.
*Jairo Nicolau, 59. Graduado em ciências sociais pela Universidade Federal Fluminense, com mestrado e doutorado em ciência política pelo Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), é professor da FGV Cpdcoc (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil). É autor, entre outros livros, de "O Brasil Dobrou à Direita: Uma Radiografia da Eleição de Bolsonaro em 2018" (Zahar, 2020)
Um comentário:
Quem gosta de livros vota em Lula,quem compra vaca vota em Bolsonaro,simples assim.
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