O Estado de S. Paulo
O ataque do Hamas a Israel, ainda que precedido por uma longa série de ‘avisos’, desde 1948, combinou os ingredientes essenciais de ambas
O adjetivo político(a) pode ser aplicado com
propriedade a uma infinidade de situações, ações e fatos. Podemos caracterizar
como político desde a eleição de um prefeito nos cafundós de algum país a um
embate eleitoral e, até mesmo, com limites, a atos de guerra. Se perguntarmos o
que é política a uma pessoa que não nutra interesse algum pela vida pública, as
respostas mais prováveis serão “não sei” ou “as falcatruas daquela corriola de
Brasília”.
A linha divisória entre determinado fato político e a antipolítica – e aqui me refiro ao terrorismo e ao genocídio – nem sempre é nítida. A desproporção entre o fato que possa ter sido a causa de uma resposta terrorista é uma aproximação, mas não é uma resposta satisfatória. Considere-se, por exemplo, o ataque japonês à base americana de Pearl Harbor, em 1941. A situação mundial era de guerra, o Japão já estava na guerra, e tratava-se de uma base militar. Mas os Estados Unidos não haviam ainda entrado na guerra. O que faz pensar em terrorismo, no caso, é seu caráter traiçoeiro, a surpresa, a calada da noite, mas não seu objetivo, que foi claramente bélico, ou seja, ligado à guerra. Um tiro no pé, pois forçou a entrada dos Estados Unidos na guerra, alterando o equilíbrio de forças e decretando a derrota, em 1945, tanto do Japão quanto da Alemanha.
A ação tipicamente terrorista é encetada de
surpresa, é traiçoeira, é portadora de uma extrema crueldade, é desproporcional
e, mais importante, não é motivada por um motivo racional. É praticamente
desprovida de objetivos. Violência niilista. Pretende-se aniquilar o adversário
não pelo que ele haja feito, mas pelo que ele é. Esta é a conexão com o
genocídio: o que se pretende é dizimar um povo, uma etnia, os devotos de uma
religião, só por serem uma dessas três coisas, ou coisa análoga. Isso posto,
pareceme incontrovertível que as 2.200 bombas lançadas pelo Hamas sobre Israel
na madrugada de 7 de outubro, fazendo milhares de mortos, militares e civis, e
na plena consciência de que a retaliação seria da mesma ordem, foi claramente
um ato de terrorismo com fortes implicações genocidas.
Até aqui, esforcei-me apenas por traçar a
anatomia do terrorismo e do genocídio tal como se têm manifestado no século 21.
Mas nem precisava ter ido tão longe. Em seu documento de fundação, o Hamas
repete ad nauseam que seus objetivos são
obliterar o Estado de Israel, fundar um império que se estenda do Mediterrâneo
ao Iraque, e liquidar até o último judeu que exista na face da Terra. Nada fica
a dever à “solução final” alvitrada pelo nacional-socialismo alemão, ponto de
partida para o Holocausto. Coloca o Hamas (e seu coirmão libanês, o Hezbollah)
na condição de alucinações que nada têm que ver com a política em qualquer
acepção aceitável deste termo.
À abominável estirpe dos genocídios pertence,
sem sombra de dúvida, a guerra da Vendeia, deflagrada em 1793, durante a
Revolução Francesa, pelo Comitê de Salvação Pública, com o objetivo de acabar
com toda a população daquela província. A Revolução, segundo Robespierre e os
outros 11 integrantes do comitê entenderam, não podia conviver com uma
população católica e monarquista, enfurecida pela decapitação do rei Luís 16.
Um século depois, Stalin, a fim de confiscar todos os alimentos da Ucrânia,
submeteu-a ao holodomor (literalmente, “deixar morrer de fome”). Em 1994, em
Ruanda, leste da África, a maioria étnica hutu praticamente dizimou a minoria
tútsi, na base do facão e da foice, deixando um legado de 1 milhão de mortos.
Fiz referência acima à dificuldade de estabelecer tais distinções com base tão somente na desproporção da violência empregada contra um presuntivo adversário. Um exemplo clássico de tal dificuldade foi a destruição de Cartago (cidade situada na atual Tunísia) pela República Romana, no ano de 146 a.C. Diga-se o que se disser da extensão da violência, tratava-se claramente de um enfrentamento bélico (o longo século das chamadas guerras “púnicas”) entre duas grandes potências, ambas empenhadas em assumir a hegemonia no Mediterrâneo. Décadas antes, o general cartaginês Aníbal havia conduzido um formidável exército sobre os Alpes até chegar às portas de Roma. Rechaçado, foi obrigado a fazer o caminho de volta, mas o destino estava traçado. O contra-ataque romano destruiu Cartago – ou, para ser mais exato – reduziu-a a cinzas.
Terrorismo é óbvio que não foi, pelas razões
acima expostas. Os cartagineses não foram aniquilados por serem cartagineses,
mas por integrarem uma potência rival. No entanto, podemos, sim, dizer que
houve desproporção, mas isso não aproxima tal desfecho do perpetrado por Hitler
em Auschwitz.
O ataque do Hamas a Israel, ainda que precedido por uma longa série de avisos, desde 1948, este sim combinou os ingredientes essenciais do terrorismo e do genocídio: a surpresa traiçoeira, a extrema crueldade, o completo despropósito e a intenção de destruir o adversário em razão de sua própria existência, não pelo que ele haja feito ou deixado de fazer.
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