quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Felipe Salto* - O cheque sem fundo do Congresso

O Estado de S. Paulo

A desoneração da folha é uma medida sem efeito sobre emprego, renda e crescimento. Mesmo assim, o Congresso decidiu impor ao País um custo de R$ 20 bi

É direito do Congresso Nacional derrubar qualquer veto presidencial. Foi o que ocorreu no caso do veto ao Projeto de Lei n.º 334, de 2023, que prorrogava a desoneração da folha de pagamentos e reduzia a alíquota de contribuição previdenciária de parte dos municípios. Contudo, essa decisão do Congresso foi intempestiva, pois levou à promulgação da Lei n.º 14.784, em dezembro de 2023, um cheque sem fundos de cerca de R$ 20 bilhões. Só que o Orçamento público não aceita fiado.

A desoneração da folha é uma medida sem efeito sobre o emprego, a renda e o crescimento econômico. Mesmo assim, o Congresso decidiu rejeitar o veto presidencial e impor ao País um custo de cerca de R$ 20 bilhões. Pior, não mostrou como a conta seria paga, em desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal.

A Lei Orçamentária Anual não previa recursos para essas duas finalidades – a prorrogação da desoneração da folha para 17 setores de atividade econômica e a redução da alíquota de contribuição previdenciária para um conjunto de municípios (aqueles que utilizam o regime geral da Previdência para seus servidores). O Congresso, depois de garfar R$ 53 bilhões em emendas, no processo orçamentário, deu ao governo mais esse presente de grego.

A reação do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi acertada. Ele indicou que o caminho seria, provavelmente, o da judicialização. Afinal, a prorrogação da desoneração nos moldes antigos fere a Emenda Constitucional n.º 103, da reforma da Previdência, por prever a continuidade da contribuição sobre o faturamento (artigo 30). Mais do que isso, a responsabilidade fiscal obriga à chamada compensação.

A lógica é direta: quer criar despesas novas ou reduzir impostos? Então, mostre como a conta será paga. Só não vale usar o argumento do moto-perpétuo, segundo o qual a medida seria tão boa que, por si só, geraria maior crescimento econômico e, portanto, produziria mais receitas para compensar o custo original.

Vamos explicar isso direito. A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 101, de 2000), ao regulamentar a própria Constituição federal, determina o seguinte:

“Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:

I - demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;

II - estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.”

Mais claro, impossível. A lei da desoneração, derivada da decisão do Congresso Nacional (de derrubar o veto), fere o artigo 14 acima transcrito. Os efeitos das perdas de receita (chamadas de renúncias fiscais, no jargão) não estão contemplados nas projeções e nas metas fiscais para 2024, tampouco a nova lei trouxe medidas para neutralizar o custo contratado.

Os parlamentares conhecem bem o tema. Por essa razão, foram à mesa negociar com o ministro Fernando Haddad, evitando (por ora) a judicialização. O próprio Ministério da Fazenda, nesse sentido, apresentou a Medida Provisória (MP) n° 1.202, com quatro objetivos: a) revogar a Lei n.º 14.784; b) reonerar mais rapidamente o Perse (programa de ajuda aos setores de eventos, restaurantes, etc., criado na época da pandemia); c) focalizar a desoneração da folha à faixa de um salário mínimo, com uma escadinha para as alíquotas retornarem ao padrão até 2027; e d) limitar o instituto da compensação tributária.

A proposta é boa, porque estabelece uma transição crível até o término definitivo do programa de desoneração da folha. A focalização também é bem-vinda, pois reduz os custos. As mudanças no cronograma do Perse, por sua vez, vão ajudar a pagar a nova renúncia (agora, de cerca de R$ 6 bilhões).

Quanto ao item “d”, acima, a ideia do governo é estancar a sangria de mais uma chaga identificada nos cofres públicos. Trata-se da compensação tributária – uma maneira de saldar débitos com o Fisco usando créditos tributários, isto é, direitos adquiridos pelos contribuintes junto ao Estado. Esses direitos podem ser exercidos por meio de um precatório, como acontece com qualquer mortal em tantos outros casos.

Mas, nos assuntos tributários, a Receita Federal permite ao contribuinte usar a compensação. A nova MP autoriza a fixação de limites para isso. Assim, o governo terá maior previsibilidade sobre o fluxo de receitas. Cura-se a ferida. Não tem nada a ver com calote, como já se fala por aí. Essas declarações geram ruído e confusão, alimento à sanha contra o erário.

Acabar com a “mamata” é difícil, caros leitores. A lógica do “quem quer dinheiro?” não serve para nada além de ajudar Silvio Santos a conquistar o auditório. Na gestão das contas do País, o populismo e seus cheques voadores têm de ser eliminados.

*Economista-chefe e sócio da Warren Investimentos, foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo

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