Valor Econômico
Golpistas não se sentiram seguros para cruzar a linha
“Em Estado-Maior admite-se o risco calculado,
jamais a aventura”. Chefe do Estado-Maior do Exército em 1964 e principal líder
da conspiração dentro das casernas do golpe de 31 de março, o marechal Humberto
de Alencar Castello Branco fez essa advertência várias vezes durante os
preparativos da derrubada de João Goulart. O que Castello queria dizer é que
disposição não faltava para golpear as instituições, mas os conspiradores não
deviam cruzar a linha da insurreição a não ser que tivessem razoável certeza do
sucesso.
A leitura da decisão do ministro Alexandre de Moraes que desencadeou a Operação “Tempus Veritatis”, desvendando uma orquestração para um golpe de Estado que teria sido comandada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e por seu entorno, mostra que os golpistas não se sentiram seguros para cruzar a linha. Faltou o aval do Alto Comando do Exército.
Anos e anos de corrosão da disciplina nos
quartéis patrocinada por Bolsonaro não foram suficientes para corromper as
Forças Armadas como um todo. Nesse sentido, a decisão de Moraes preserva até
certo ponto a imagem militar, ainda que não se possa falar de compromisso firme
com a democracia, tanto que se toleraram as concentrações em frente aos
quartéis. Ficaram no meio do caminho, do que se conclui que o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva tem um problema. A decisão menciona envolvimento de
militares da ativa no complô. Como no conto de Cortázar, há um tigre andando
pela sala, ainda que os donos da casa evitem se encontrar com a fera.
A primeira vez que o golpe foi posto sobre a
mesa, de acordo com a decisão, foi em 5 de julho de 2022, durante reunião com a
presença de Bolsonaro, do então ministro da Justiça Anderson Torres, do à época
ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Oliveira, do general Mário Fernandes,
chefe-substituto da Secretaria-Geral da Presidência, do futuro candidato a
vice, general Walter Braga Netto e do, na ocasião, ministro do Gabinete de
Segurança Institucional, general Augusto Heleno.
Todos mostravam apreensão com o rumo da
campanha eleitoral e havia certa hesitação sobre o que fazer. A estratégia
defendida por Bolsonaro era investir na desinformação e no descrédito da
Justiça Eleitoral. Dali a poucos dias, realizaria a fatídica reunião com os
embaixadores, que redundaria na cassação de seus direitos eleitorais em junho
do ano passado. Foi então que o general Heleno roubou a cena: “Não vai ter
revisão do VAR. Então o que tiver que ser feito, tem que ser feito antes das
eleições. Se tiver que dar soco na mesa, é antes das eleições. Se tiver que
virar a mesa, é antes das eleições”, afirmou, segundo registro de vídeo
encontrado em computador apreendido na casa do ex-ajudante de ordens de
Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid. Heleno foi didático: “Vai chegar um
ponto que nós não vamos mais poder falar. Nós vamos ter que agir. Agir contra
determinadas instituições e determinadas pessoas. Isso para mim é muito claro.”
Era muito claro. Infelizmente a decisão não
relata qual foi a reação dos presentes em relação à proposta. O relato das
insânias sugere que a estratégia adotada foi deixar a eleição acontecer,
apresentar uma contestação do PL a supostas fraudes, mostrar que os militares
que acompanharam o processo eleitoral não corroboravam o resultado das urnas,
insuflar manifestações golpistas para emular um “clamor das ruas” e então agir
contra determinadas instituições e determinadas pessoas.
No dia 7 de dezembro de 2022, relata a
petição, Bolsonaro teria se reunido com os comandantes militares e formalizado
a proposta do golpe. O golpe, posto no papel, era uma minuta apresentada pelo
assessor Felipe Martins, redigida com alguma fachada jurídica. Em termos que
não ficaram totalmente esclarecidos, o comandante do Exército Freire Gomes e o
da Aeronáutica Baptista Júnior foram contra. De nada servia, portanto, o
endosso apenas do comandante da Marinha, almirante Almir Garnier.
O golpe começava a gorar. Daí em diante o que
se relata é a consternação dos golpistas, diante da falta de endosso da cúpula
das Forças Armadas. Braga Netto, mostra a petição, começou a insuflar uma
campanha subterrânea para pressionar os comandantes legalistas. Houve reuniões
em residências do Plano Piloto em Brasília, pedidos de dinheiro, elaboração de
manifestos, de peças difamatórias.
No dia 9 de dezembro, 48 horas depois
portanto da reunião de cúpula, Bolsonaro se encontra no Palácio da Alvorada com
o comandante de operações terrestres (Coter), general Estevam Theophilo. Essa é
a unidade a quem caberia a execução do golpe. O general Theophilo teria dito a
Bolsonaro que não se opunha, mas exigia que ele, Bolsonaro, desse a ordem.
Bolsonaro deu a ordem? aparentemente não. Ou seja, buscava-se o risco
calculado, de parte a parte, não a aventura.
Persistiu a campanha subterrânea e o
monitoramento das atividades do alvo Zero Um, Moraes. Mensagens eram trocadas,
dando contas de onde o presidente do TSE estaria em tal ou tal dia. Chegou-se a
especular uma data chave para a prisão, 18 de dezembro, mas a essa época, onde
estava o presidente na conjura? Não há mais registro de atividades de Bolsonaro
até a sua quase fuga para Orlando. Aparentemente a conjura desconjuntou-se. Sem
o aval dos comandantes, era aventura. Sendo aventura, não havia como cruzar a
linha. Eram os estertores do golpismo, que alimentavam as manifestações nas
portas dos quartéis e que, 8 dias depois do fim do mandato de Bolsonaro,
explodiram em estrondo e fúria na sede dos Três Poderes.
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