quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Maria Cristina Fernandes - Os riscos do fosso entre a avenida e o palanque

Valor Econômico

Golpismo dos manifestantes não encontrou eco nos discursos mas serve de alerta contra a polarização

O fosso entre aquilo que os manifestantes do domingo na avenida Paulista queriam ouvir e aquilo que foi dito no palanque contém um alerta desprezado pelo partido do presidente da República e movimentos sociais e até por setores do governo.

Não era fácil encontrar alguém naquela avenida que acreditasse na lisura do processo que colocou Luiz Inácio Lula da Silva no poder. Esta dificuldade foi mensurada pelo Monitor Digital da USP, que atestou a crença de 88% dos manifestantes de que a eleição de Lula foi fraudada.

Esta expressiva maioria de manifestantes não encontrou eco no palanque. Não ouviu isso do estridente Silas Malafaia, que protestou contra a “perseguição” a Jair Bolsonaro mas não questionou o resultado, nem da pastora Michelle e menos ainda do ex-presidente, que só queria mesmo “apagar o passado”.

Talvez por isso quando a Genial/Quaest saiu pelo país a perguntar sobre a manifestação, identificaria, em apenas 11% de seus questionários, a convicção de que aquele ato frearia as investigações em curso.

Esta frustração acomodará o golpismo? É o cerco do Supremo aos militares que o fará. O mais provável é que a insatisfação dos bolsonaristas sobreviva como uma centelha da radicalização.

Por isso, o ato convocado para o dia 24 de março pelo PT, PCdoB, PSol, MST e UNE pela prisão de Bolsonaro e a favor da democracia é um fósforo num ambiente propício à combustão.

Seus organizadores informam que os planos de realizá-lo já existiam antes deste ato de Bolsonaro e que, à pauta dos 60 anos do golpe de 1964, se acresceu a do #SemAnistia.

Na entrevista a Kennedy Alencar, Lula não se incomodou em desagradar seu partido. Disse estar mais preocupado como 8/1 do que com o 31/3. Deu eco ao presidente do Superior Tribunal Militar, Joseli Camelo, sobre o julgamento histórico dos militares, mas não foi além.

Disse ainda que o golpe já causou muito sofrimento mas o povo conquistou a democracia e que era a hora de colocar o país na rota do crescimento e não de remoer o passado.

Não se faz história sem memória, mas Lula já percebeu os riscos que o cultivo desta efeméride em praça pública traz à conjuntura. O primeiro é o de esta manifestação colocar muito menos gente na rua, gerando uma comparação inevitável com a de domingo.

A esquerda tem baixa capacidade de mobilizar mas converge com a maioria da população nesta pauta. Segundo a Genial/Quaest, a maioria acha que Bolsonaro não está sendo perseguido, que é justo torná-lo inelegível e prendê-lo.

Um segundo risco é o de se criar uma polarização que hoje não está presente. A anistia hoje está restrita à proposta do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), mas não está na pauta que norteia o Congresso e, muito menos, o Judiciário.

Lula foi preciso ao ser indagado sobre anistia ao dizer que Bolsonaro primeiro precisa ser julgado. Claramente negou seu apoio à pauta.

O terceiro risco é o de que a manifestação se transforme naquilo que não será. Quem assistiu à manifestação “EleNão” no fim de semana anterior ao 1º turno de 2018 há de lembrar como aquele congraçamento, convocado em protesto contra a misoginia bolsonarista, se transformou, nas redes sociais, num festival de mulheres defecando nas ruas, com seios de fora e sexo ao ar livre.

Em estudo sobre as 72 horas que mudaram aquela campanha, Beto Vasques, do Democracia em Xeque, mostrou como, na véspera daquela manifestação no sábado, 29 de setembro, Fernando Haddad se colocava à frente pela primeira vez ante um Bolsonaro estagnado.

No domingo, a depravação fabricada tomou conta do púlpito dos cultos pentecostais. Não deu outra. Na segunda-feira, Bolsonaro aparecia disparado nas intenções de voto e Haddad, na rejeição. No fim de semana seguinte, o ex-presidente passaria para o 2° turno com quase 18 milhões de votos à frente.

A resiliência desta fábrica de realidades paralelas, aperfeiçoada tecnologicamente, levou o Tribunal Superior Eleitoral a editar, pela primeira vez, uma resolução que limita o uso da inteligência artificial nas eleições municipais.

O governo, porém, não pode delegar este combate inteiramente ao Judiciário. E, menos ainda, incitar a polarização. A despeito das evidências de que esta só beneficia e dá sobrevida ao bolsonarismo, ainda há, no Palácio do Planalto, quem tenha visto na polêmica do Holocausto um “despertar da militância”.

São os mesmos que aplaudem as vaias a jornalistas que fazem perguntas incômodas a Lula ou que vibram com a barreira da Gaviões da Fiel à entrada de manifestantes nos vagões do metrô no domingo.

Só não são capazes de pautar inteiramente o presidente. Sua estratégia no tema Gaza é clara. Diz que não arreda o pé de sua declaração, mas não voltou a falar de Hitler e repisa o “genocídio” sempre que pode. Opta por um termo que não aparenta recuo e, ao mesmo tempo, não atiça o debate da mesma forma.

É bem verdade que o governo e o PT precisam de militância nas redes sociais, mas a polarização hoje desfavorece Lula. Não há alternativa senão a da conquista do centro e o desarme das trincheiras do bolsonarismo.

Foi o que fez o governo ao ampliar a isenção tributária às igrejas e ao recuar da reoneração de setores da economia. As medidas colidem com a justiça tributária de Haddad, mas circunscrevem a oposição ao apelo ideológico. Isolá-la nas pautas da vida real é a única saída para evitar a combustão.

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