Renegociação de leniências não é revisionismo
O Globo
Prazo de 60 dias concedido no STF se destina
a rever valor das multas, não a anular provas de corrupção
A Segunda
Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) adiou a análise de decisão do ministro
Dias Toffoli que anulou as provas obtidas no acordo de
leniência da Odebrecht (rebatizada de Novonor) no âmbito da Operação Lava-Jato.
O colegiado decidiu por unanimidade esperar a tentativa de conciliação,
promovida noutro processo, envolvendo 11 empresas que assinaram acordos de
leniência num valor estimado em R$ 17 bilhões — Odebrecht inclusive.
Os partidos PSOL, PCdoB e Solidariedade alegaram ilegalidades nesses acordos de leniência e pediram a suspensão das multas das companhias que confessaram envolvimento em corrupção. Argumentam que eles foram fechados em momento marcado por “reprovável punitivismo”. Afirmam que houve “coação” e falam em “Estado de Coisas Inconstitucional”. Sustentam, por fim, que o Acordo de Cooperação Técnica (ACT), com regras sobre os procedimentos em leniências, foi posterior à Lava-Jato e pedem a revisão do que foi fechado antes.
Relator desse processo, o ministro André
Mendonça decidiu que o caso será julgado pelo plenário. Mas, antes disso,
tentou uma saída consensual. Em audiência com representantes da
Procuradoria-Geral da República, do Tribunal de Contas da União, da Advocacia-Geral
da União, da Controladoria-Geral da União e das empresas, ele suspendeu os
pagamentos das multas por 60 dias, prazo para que os envolvidos
cheguem a consenso sobre os termos do acordo e o valor a pagar. Apesar de ter
aparentemente atendido ao pleito das empresas, Mendonça foi preciso ao afirmar
que não há espaço para “revisionismo histórico”. Ele está certo.
Os fatos usados para sustentar os acordos,
com confissões e vasta comprovação documental da corrupção, são
inquestionáveis. Mendonça disse o óbvio, mas, no momento atual, quando muitos
tentam apagar crimes do passado, sua declaração é necessária. Na presença dele,
nenhum advogado das empresas implicadas afirmou ter havido coação. Portanto não
há questão sobre a validade dos acordos. O que está em discussão é o valor das
multas.
O objetivo é que a negociação aconteça com
base nos princípios “da boa-fé, da mútua colaboração, da confidencialidade, da
razoabilidade e da proporcionalidade”. Para que essas metas sejam atingidas, as
autoridades deverão examinar os detalhes. É evidente que companhias tentarão
exagerar seu risco financeiro para tentar obter descontos ou dilatar prazos,
mantendo os benefícios garantidos pelos acordos de leniência. Mas não se pode
sacrificar o combate à corrupção sob o argumento de evitar dano econômico a uma
ou outra empresa. Ao contrário, a economia se beneficia de relações
transparentes de todas as empresas com o Estado.
Quando Toffoli anulou as provas do acordo de
leniência da Odebrecht, argumentou que os envolvidos “desrespeitaram o devido
processo legal, descumpriram decisões judiciais superiores, subverteram provas,
agiram com parcialidade”. Desde então, suspendeu as multas da J&F e da
própria Odebrecht, num movimento temerário que ignora a teia de corrupção
comprovada pelas empresas ao firmar tais acordos. Casos dessa envergadura
precisam ser avaliados pelo plenário do STF. O prazo de 60 dias dado por
Mendonça existe apenas para renegociar termos e valores dos acordos, não para
invalidar provas de corrupção, em mais um recuo com prejuízo para o país.
Não é razoável misturar contribuição a
sindicatos com discussão sobre feriados
O Globo
Qualquer que seja a proposta do governo,
trabalhador deve ter direito a não contribuir se assim desejar
O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, não
desfez a confusão criada pelo próprio governo sobre o trabalho aos feriados e,
em vez disso, criou mais confusão. Ao prorrogar por 90 dias as normas atuais
para que estabelecimentos funcionem sem restrições nessas datas, ele disse que
o assunto deverá ser tratado por um Projeto de Lei que deverá abordar também a
contribuição a sindicatos. São temas sem relação nenhuma, e não há motivo para
que sejam tratados em conjunto.
Em reunião com parlamentares, Marinho pediu
apoio para aprovar uma proposta trazendo de volta a contribuição a sindicatos
com desconto no salário. Ele nega querer ressuscitar o imposto sindical
obrigatório — extinto na reforma trabalhista de 2017 — e fala, no lugar disso,
em “contribuição negocial”. Parlamentares que participaram do encontro disseram
que ela seria cobrada nos acordos coletivos como contrapartida pelo serviço dos
sindicatos. Os detalhes deverão ser apresentados em 15 dias.
É natural que o atual governo, com raízes
históricas no movimento sindical, se preocupe com a derrocada financeira dos
sindicatos. Depois da reforma de 2017, a arrecadação deles, que chegara a R$ 3
bilhões por ano, caiu para R$ 53,6 milhões em 2022. Mas qualquer proposta que
avance sobre o bolso do trabalhador precisa ser analisada com cautela. Em
primeiro lugar, o governo precisa deixar claro o que pretende. Transparência e
diálogo não têm sido pontos fortes do Ministério do Trabalho.
Contribuição sindical é tema sempre sensível.
Em setembro passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por 10 votos a
1, que é constitucional instituir uma cobrança assistencial de empregados
(sindicalizados ou não) por meio de acordo ou convenção coletiva. Mas deixou
claro que é assegurado ao trabalhador o direito de oposição. Isso significa que
ele pode recusar o desconto em seu salário. Esse é o ponto fundamental da
questão — e qualquer proposta deve obrigatoriamente levá-lo em conta.
O argumento do STF é sensato. Diferentemente
da contribuição sindical obrigatória, a assistencial se destina a financiar a
atividade exercida em nome de todos (não sindicalizados também se beneficiam
dos acordos coletivos). Mas é preciso permitir que um trabalhador recuse o
desconto se não se sentir representado. Para isso, é essencial que lhe sejam
oferecidos meios, como formulário na internet ou carta simples à empresa ou ao
sindicato. Não é razoável que ele encontre dificuldade para rejeitar algo que
não pediu.
Seja qual for a proposta do governo para
reforçar o caixa dos sindicatos, ela deve ser tratada com transparência e não
deve se misturar com a questão dos feriados. O trabalhador tem o direito de
saber o tamanho da mordida em seu contracheque e de recusá-la sem burocracia se
assim desejar. Espera-se que o governo tenha aprendido com a sucessão de
trapalhadas sobre o trabalho nos feriados, até agora à espera de regulamentação
sensata.
Crédito para estados e cidades cria risco
fiscal
Folha de S. Paulo
Alta de financiamentos para governos
regionais, baseada em bancos públicos, pode estimular expansão temerária de
gastos
O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vem
promovendo uma guinada perigosa na política de crédito a estados e municípios.
Só no ano passado, governadores
e prefeitos contrataram R$ 43,3 bilhões em financiamentos no mercado interno,
como noticiou a Folha, em geral por meio de bancos estatais.
O aumento foi de 142% em relação a 2022 —no
caso dos estados, de 233%. A expansão célere do crédito num único ano só foi
possível porque o governo
ampliou o limite de que as administrações regionais têm para contrair dívidas no
sistema financeiro nacional, com e sem aval do Tesouro.
O mais preocupante, e que passou quase
despercebido por especialistas em contas públicas do país, foi a decisão do
Conselho Monetário Nacional (CMN) de retirar do teto as operações contratadas
por estados e municípios que passam por planos de ajuste fiscal.
Entre eles estão os que ingressaram em
programas de socorro mais recentes, como o Regime de Recuperação Fiscal (RRF)
—justamente governos endividados, que precisam da ajuda federal para colocar as
contas em dia.
A decisão do CMN, ressalve-se, foi tomada em
2022, nos últimos dias de Jair Bolsonaro (PL), quando já havia forte pressão
dos governadores eleitos e reeleitos para conseguir dinheiro novo.
A resolução retirou transparência dos dados,
que servem de leitura obrigatória para avaliar a saúde financeira do setor
público.
O resultado é a fragilização do limite fixado
como instrumento para evitar o alto endividamento.
Já era esperado que Lula fosse aumentar a
injeção de recursos nos estados. Na campanha eleitoral e durante a transição, o
petista prometeu viabilizar acesso ao crédito para ampliar os investimentos.
Um dos seus primeiros compromissos na cadeira
de presidente da República foi se reunir com os governadores e encomendar
projetos. Neste 2024, a margem para novos financiamentos subiu para temerários
R$ 74 bilhões.
O risco, como sempre, é que os governos
regionais se aproveitem da liberalidade para expandir imprudentemente suas
despesas, em especial as de caráter permanente, como salários de servidores.
Depois, resta à União promover mais programas
de ajuda a governos estaduais —história que tem se repetido nas últimas décadas
no Brasil, na qual gestores de pires na mão vão bater à porta da Fazenda ou
diretamente do Congresso.
Enquanto as análises sobre a política
orçamentária se concentram hoje em questões de curto prazo, a escalada do
endividamento regional pode criar uma crise futura. Se esse fosse um bom
negócio, não haveria quase só bancos públicos aportando dinheiro.
Sombra de Guantánamo
Folha de S. Paulo
Prisão americana mostra que inexiste razão
válida para relativizar direitos
Diante dos atentados de 11 de setembro de
2001, o governo de George W. Bush propôs, e boa parte da sociedade americana
aceitou, relativizar as garantias processuais de suspeitos de envolvimento com
o terrorismo. Valeria tudo para evitar a repetição daquela tragédia.
De fato, é impossível saber como teria
transcorrido a história do mundo se os EUA não tivessem adotado medidas
draconianas ali.
No entanto é fato que o descaso com direitos
criou um problema do qual Washington não consegue se livrar. Trata-se de
Guantánamo, a base militar americana em Cuba convertida em prisão para
suspeitos de terrorismo após o 11/9.
O local abrigou cerca de 800 presos, que eram
capturados em diversos países e ficavam na dupla condição de combatentes
inimigos e suspeitos de terrorismo.
Um combatente inimigo pode ser detido sem
acusações formais, mas só enquanto perdura o conflito. A guerra ao terror,
contudo, não tem data para acabar.
Já suspeitos de terrorismo precisariam ser
acusados de um ou mais crimes, mas Washington não conseguia fazê-lo ou por não
ter reunido provas suficientes, ou por tê-las
obtido mediante tortura, ou por temer revelar informações sensíveis,
como a identidade de agentes.
Foi esse complexo limbo jurídico que permitiu
a continuidade do descalabro em Guantánamo.
Apesar de não cumprirem a promessa de fechar a prisão, Barack Obama e agora Joe
Biden iniciaram a liberação de presos, porém 30 indivíduos ainda estão no
cárcere.
Mais da metade deles já poderia estar livre,
mas uma
confluências de questões burocráticas e políticas impede a soltura.
A tortura aplicada nos primeiros anos põe as
confissões em xeque, mesmo as que não foram obtidas mediante violência física
—condicionamentos psicológicos gerados por ela também afetariam a validade
jurídica de testemunhos.
Passados 23 anos, a relativização de garantias legais saiu cara. Além do óbvio prejuízo às pessoas, há um enorme dano político para Washington, que já não tem respaldo para cobrar com veemência o respeito aos direitos humanos, nem de aliados nem de inimigos.
Lula, o irredutível
O Estado de S. Paulo
Ao dizer que não usou a palavra ‘Holocausto’ para criticar a ofensiva de Israel contra o Hamas, Lula debocha da inteligência alheia e rebaixa ainda mais sua condição de chefe de Estado
Como se sabe, o presidente Lula da Silva, há
alguns dias, comparou a ação militar de Israel contra o Hamas em Gaza ao
genocídio dos judeus pelos nazistas na 2.ª Guerra. Ao fazê-lo, ofendeu a
memória das vítimas do Holocausto, os descendentes dessas vítimas e todos os
cidadãos brasileiros – judeus ou não – dotados de senso de justiça, firmeza
moral e compaixão. Em vez de pedir desculpas por tamanho ultraje, Lula, o
irredutível, partiu para nova ofensa, desta vez também à inteligência alheia.
Durante entrevista a um programa da RedeTV!,
na terça-feira passada, Lula não só afirmou que “diria a mesma coisa” caso
pudesse voltar no tempo, como teve a desfaçatez de alegar que jamais empregou a
palavra “Holocausto” para criticar a campanha militar israelense na Faixa de
Gaza. “Holocausto foi uma interpretação do primeiro-ministro de Israel, não foi
minha”, disse o petista.
A desonestidade intelectual é gritante.
Convém recordar a fala de Lula que causou a celeuma: “O que está acontecendo em
Gaza (as mortes de civis) não existiu em nenhum outro momento histórico. Aliás,
existiu. Quando Hitler resolveu matar os judeus”. Pois foi exatamente “quando
Hitler resolveu matar os judeus” que se criou o termo Holocausto para designar
esse crime.
Evidentemente, Lula sabe muito bem o que foi
o Holocausto. Sabia exatamente a reação que pretendia causar quando disse que a
campanha militar de Israel contra o Hamas equivalia à resolução de Hitler de
“matar os judeus”. Estamos diante, portanto, de pura má-fé. Seja por cacoete
ideológico, seja porque se considera incapaz de errar, Lula preferiu se aferrar
à infâmia e, por que não?, ampliá-la.
Havia formas dignas de o presidente
brasileiro sustentar críticas legítimas à condução da guerra contra o Hamas por
Israel – que decerto contém atos que podem ser classificados como crimes de
guerra – sem afrontar a História nem ofender milhões de cidadãos mundo afora.
Mas Lula é caso perdido. Resta evidente que o demiurgo petista só se interessa
pelo que acontece em Gaza na exata medida do seu objetivo de bancar o guia
genial do tal “Sul Global” contra os “imperialistas” americanos e seus
satélites, particularmente Israel. Para Lula, os fatos – bem como a História –
são irrelevantes.
Mas não ficou só nisso. Lula considera que o
que ocorre na Faixa de Gaza não é “uma guerra de um exército altamente
preparado contra outro exército altamente preparado”, e sim, “na verdade, uma
guerra de um exército altamente preparado contra mulheres e crianças”. Trata-se
de uma evidente tentativa de ilustrar o tal “genocídio” de que o petista acusa
Israel. Ora, o Exército de Israel trava uma guerra contra um inimigo feroz que
tem como objetivo declarado a aniquilação dos judeus, que atacou covardemente
civis israelenses e que usa palestinos inocentes como escudos humanos. Lula,
contudo, escolheu ignorar a natureza terrorista e genocida do Hamas e condenar
o país agredido, atribuindo a Israel – fundado como uma forma de dar segurança
aos judeus, que estiveram à beira da extinção com o Holocausto – um crime
semelhante justamente ao cometido contra os judeus por Hitler. Não foi à toa
que o Hamas agradeceu a Lula por suas palavras.
A imoralidade lulopetista é evidente. Depois
dessa entrevista, está claro que é ocioso esperar de Lula qualquer gesto
público de grandeza, isto é, que reconsidere sua descabida comparação entre a
guerra em Gaza e o Holocausto e que peça desculpas a todos os que se ofenderam
com sua fala.
No limite, é compreensível que a grosseria do
governo israelense ao responder ao presidente brasileiro dificulte um pedido
formal de desculpas. Mas, como chefe de Estado, como a voz do povo brasileiro
que se faz ouvir entre a comunidade das nações, a Lula se impõe alguma
retratação – mesmo como um simples gesto político, como um sinal de respeito,
para o Brasil e para o mundo, aos valores universais sobre os quais foi erigida
esta República. Infelizmente, ao que tudo indica, não vai acontecer.
É preciso racionalizar o sistema policial
O Estado de S. Paulo
Fórum de Segurança Pública evidencia
defasagens nos quadros e salários das polícias. Mas melhorias na gestão e
alocação de recursos seriam mais relevantes que um aumento quantitativo
Segundo um levantamento do Fórum de Segurança
Pública, em dez anos o efetivo da Polícia Militar (PM) no Brasil caiu 6,8% (30
mil); e o da Polícia Civil, 2% (2,2 mil). O Raio-x das Forças de Segurança
Pública mostra que o salário dos policiais é defasado na comparação
internacional. A solução parece simples: mais policiais e melhores salários.
Mas é preciso relativizar essa conclusão. Embora obviamente essa possa ser uma
diretriz geral, há a necessidade de reformar o modelo de administração pública.
Sem isso, o mero aumento quantitativo pode ser fiscalmente inviável e, sem
mudanças na gestão e na alocação de pessoas e recursos, pode ser improdutivo e
até contraproducente.
Na diferença entre o número de policiais
ativos e o número de vagas previstas, o Fórum aponta uma defasagem de 30% para
a PM e de 36% para a Polícia Civil. Mas essas vagas são estabelecidas por cada
Estado, em geral sem critérios técnicos. A previsão no Amapá, por exemplo, é de
um PM para cada 92 habitantes. Se esse critério fosse aplicado em São Paulo,
seriam 480 mil policiais, mais do que o contingente nacional inteiro. Na
prática, o Amapá, um dos Estados mais violentos do Brasil (inclusive em mortes por
policiais), tem 4,2 PMs por mil habitantes, enquanto São Paulo, um dos menos
violentos, tem 1,8.
O Brasil tem dois PMs por mil habitantes, um
índice razoável comparado ao restante do mundo. Os EUA têm entre 1,8 e 2,6. Mas
há um problema de alocação. Com justas razões, as exigências técnicas e a
exposição ao risco fazem dos policiais profissionais caros. Mas, no Brasil, o
efetivo é desperdiçado em tarefas administrativas e burocráticas. Em Nova York,
30% dos funcionários da polícia são civis, o que permite empregar os policiais
efetivamente na repressão ao crime.
Os policiais no Brasil são mal remunerados.
Levando em consideração o custo de vida de cada país, a remuneração média do
policial brasileiro está abaixo do que se paga no Chile e em Portugal, por
exemplo.
Além de tudo, há as distorções típicas do
serviço público: uns poucos no topo ganham muito, e a maioria na base, pouco.
Mais de 33 mil oficiais recebem acima do teto do funcionalismo. A progressão de
carreira é disfuncional. Em muitos Estados há mais sargentos do que praças.
Somem-se a isso as pressões fiscais e previdenciárias, e estabelece-se um
quadro viciado em que é difícil repor os efetivos e remunerá-los adequadamente.
Além disso, 98% dos gastos são de custeio, sobrando pouco para investimento.
Com o déficit dos efetivos estaduais, as
prefeituras cada vez mais assumem respostas reativas, ampliando guardas
municipais menos preparadas para o policiamento e absorvendo recursos que
poderiam ser mais bem aplicados em prevenção social. O desenho urbano, às vezes
a mera iluminação pública, pode ter impacto expressivo na redução da
criminalidade. Ocorrências criminais são extraordinariamente concentradas, e um
mapeamento bem feito pode ajudar a polícia a direcionar sua atuação. Mas poucos
governos investem nisso.
Estados no topo dos índices de segurança
pública, como São Paulo, Santa Catarina ou Minas Gerais, podem servir de modelo
para racionalizar os sistemas de alocação de pessoal e recursos. São Estados
com efetivos e gastos relativamente baixos, mas que têm sistemas de gestão e
progressão mais técnicos e equilibrados e conseguem investir em treinamento,
tecnologia e inteligência, ampliando a eficácia de seus efetivos.
Modelos como esses podem servir de base para
uma regulação nacional racionalizando a gestão e alocação das polícias. Mas,
tradicionalmente, a Federação é negligente. O governo de Michel Temer lançou os
alicerces de um Sistema Único de Segurança Pública, mas desde o governo de Jair
Bolsonaro sua construção foi deixada de lado. Governos de esquerda, como o do
PT, sofrem de miopia ideológica e tendem a vilanizar as polícias e concentrar
esforços na suposta prevenção social como uma panaceia que na prática se mostra
inócua.
É preciso mais policiais com melhores
salários, mas, sobretudo, é preciso racionalizar o sistema policial.
A desastrada reoneração da folha
O Estado de S. Paulo
Demora em resolver o problema explicita
dificuldade de Haddad para defender a meta fiscal
O governo Lula da Silva finalmente anunciou a
revogação de trechos da medida provisória (MP) que reonerava a folha de
pagamento de 17 setores econômicos. Era, como se sabia, bola cantada. A forma
atrapalhada que o governo escolheu para lidar com o tema da desoneração já
prenunciava seu resultado igualmente desastrado. Era óbvio que o Congresso não
aceitaria avaliar uma medida provisória para anular os efeitos de uma proposta
aprovada por ampla maioria dos deputados e senadores no ano passado.
Ainda assim, abusando da boa vontade que o
Legislativo demonstrou ao apreciar suas medidas para recuperar receitas, o
arcabouço fiscal e a reforma tributária, o ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, aproveitou o recesso parlamentar para submeter a proposta ao
Legislativo sem sequer comunicar sua intenção aos presidentes da Câmara, Arthur
Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
O governo até conseguiu enrolar o Congresso
por um tempo. Não faltaram empresários a pressionar o Legislativo a reagir nem
parlamentares a advogar pela devolução imediata da MP ao Executivo. Pacheco, no
entanto, preferiu contemporizar e negociar uma alternativa com Haddad, e o
ministro se comprometeu a apresentar um projeto de lei em regime de urgência
para tratar do tema.
Nada justifica a demora de dois meses para
resolver o imbróglio, a não ser a necessidade de o ministro sustentar seu
discurso a favor do déficit zero. Garantir que a MP continuasse em vigor pelo
maior tempo possível era condição sine qua non para manter a meta fiscal
inalterada na primeira revisão do Orçamento, no fim de março.
Sem as receitas de reoneração, a equipe
econômica terá de recorrer a outros expedientes – leiam-se desculpas – para
assegurar que atingirá a meta sem lançar mão dos contingenciamentos.
Demonizados pelos parlamentares petistas, os bloqueios de despesas são
obrigatórios em caso de frustração de receitas ou de aumento de despesas
previstas na peça orçamentária.
Para manter a meta inalterada, não bastará
apresentar um projeto de lei com o mesmo texto da MP editada em dezembro.
Projetos de lei, diferentemente de medidas provisórias, só entram em vigor após
aprovação nas duas Casas. E, no caso da reoneração da folha, não há a menor
chance de isso ocorrer em um Congresso que se sentiu afrontado, mesmo que a
tributação retorne aos poucos e de maneira progressiva.
Influenciado pela taxação dos fundos
exclusivos e pela reoneração dos combustíveis, o recorde na arrecadação
registrado em janeiro certamente será usado como pretexto para justificar a
manutenção do déficit zero em março. O Executivo também já começou a ventilar
que as receitas de fevereiro surpreenderam positivamente, e parte dos analistas
do mercado já considera que a mudança da meta possa ficar para maio.
Bem se sabe, no entanto, que o governo não
conseguirá cumprir a meta enquanto recorrer aos artifícios e pentes-finos de
sempre. Será preciso enfrentar as despesas, sobretudo aquelas que possuem
regras de reajustes próprias e que crescem à revelia dos limites do arcabouço
fiscal.
Venezuela é teste para Lula nos 25 anos de
chavismo no poder
Valor Econômico
Apoio incondicional ao chavismo vem sendo há
muito tempo um ônus político relevante para o PT
A Venezuela deverá ser o teste mais
importante para medir a real influência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
na América do Sul neste seu terceiro mandato. O governo venezuelano se
comprometeu a realizar eleições livres e justas neste ano, mas há sinais
preocupantes de que isso poderá não ocorrer. Além disso, vem ameaçando invadir
militarmente a vizinha Guiana. Tanto um recuo político como uma aventura
militar seriam muito ruins para a Venezuela e para a região. Em reunião
prevista para ocorrer em paralelo à cúpula da Celac, Lula terá a oportunidade
de dizer isso pessoalmente a Maduro, justamente quando o chavismo completa 25
anos no poder.
A Venezuela vive um regime político
autoritário - por exemplo, o Índice de Democracia da “The Economist” assim o
reconhece pelo menos desde 2017. Em outubro de 2023, governo e oposição
negociaram o chamado Acordo de Barbados, que prevê, entre outras medidas, a
realização de eleições presidenciais livres e monitoradas neste ano. O acordo
foi visto como um passo importante rumo à normalização política do país e levou
à retirada de parte das sanções dos EUA ao petróleo, ao gás e ao ouro
venezuelanos. A retomada das exportações de petróleo favorece uma melhora da
dilapidada economia do país.
Neste mês, porém, o Supremo Tribunal de
Justiça - corte sob influência do chavismo - barrou a candidatura de Maria
Corina Machado, que seria a candidata da principal coligação de oposição, a
Plataforma Unitária. As pesquisas eleitorais precisam ser vistas com cautela no
país, mas na última sondagem do instituto Meganalisis, de janeiro, Machado
tinha 71,8% das intenções de voto, contra apenas 7,9% de Maduro. A decisão
levou os EUA a reimpor as sanções ao setor de mineração de ouro e a ameaçar
retomar as restrições ao petróleo e ao gás. Dias depois, a advogada e ativista
dos direitos humanos Rocío San Miguel foi detida, sob acusação de traição à
pátria e associação a um grupo considerado terrorista e golpista. Com acusação
similar, o governo suspendeu as atividades do escritório do Alto Comissariado
de Direitos Humanos da ONU em Caracas e expulsou seus funcionários. No
conjunto, essas medidas são um recuo do processo concordado de abertura
política. A data das eleições, que por lei devem ser realizadas em dezembro,
ainda não foi definida.
Outro sinal preocupante é a crescente tensão
em relação à região de Essequibo, na vizinha Guiana, que é reivindicada pela
Venezuela. Em dezembro, Maduro realizou um plebiscito no qual cerca de 96% dos
votantes (apenas 50% dos eleitores foram às urnas) teriam apoiado a
incorporação de Essequibo à Venezuela. Dias depois, o governo pediu ao
Legislativo que aprovasse a criação de um novo Estado em Essequibo e iniciou
uma mobilização militar na fronteira. Ainda em dezembro, numa negociação que
teve mediação do Brasil, Guiana e Venezuela concordaram em não usar a força
para resolver a disputa. Imagens de satélite divulgadas neste mês pelo Centro
de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS) mostraram, porém, que a
Venezuela está expandindo sua presença militar na fronteira.
Uma invasão de Essequibo ainda parece
improvável, devido à densa floresta na região e pelo fato de EUA e Reino Unido
já terem indicado que podem defender a Guiana no caso de um ataque. Mas a
oposição venezuelana teme que o governo use a disputa territorial como pretexto
para decretar estado de emergência e adiar as eleições.
Lula até agora tem optado por não criticar
Maduro abertamente, em linha com a posição tradicional do PT de apoio ao
chavismo. Esse apoio já causou uma divergência pública com o presidente do
Chile, o também esquerdista Gabriel Boric. Após receber Maduro no ano passado,
Lula declarou que havia sido construída uma “narrativa de antidemocracia e de
autoritarismo” em relação à Venezuela. Ao que Boric respondeu imediatamente que
não se tratava de uma narrativa: “É uma realidade, é séria”. Mais recentemente,
o ex-presidente do Uruguai José Mujica, também esquerdista, disse que “há um
governo autoritário na Venezuela” e que Maduro pode ser chamado de ditador.
Por um lado, a postura de Lula com Maduro
poderia ter o efeito de tentar resolver tanto a questão política interna como a
disputa por Essequibo. Além disso, é da tradição do Itamaraty buscar agir nos
bastidores para tentar resolver as diferenças. As medidas coercitivas adotadas
pelos EUA e por outros países para forçar uma mudança de regime e de rumo na
Venezuela fracassaram. Elas incluíram reconhecer um presidente (Juan Guaidó)
que não tinha nenhum controle do país e sanções econômicas que agravaram as condições
do povo venezuelano.
Mas Lula corre um risco importante com sua
política de boas relações e de tolerância com Maduro. Mesmo uma diplomacia de
diálogo e de bastidores precisa, ao final, trazer resultados. Se o regime
venezuelano não cumprir o Acordo de Barbados, que pode levar a uma derrota
eleitoral neste ano, ficará evidente a escassa influência de Lula. Parecerá
ainda que Maduro se aproveitou da aquiescência do presidente brasileiro para se
eternizar no poder. E reforçará a crítica da oposição no Brasil de que Lula e o
PT apoiam ditaduras de esquerda.
O apoio incondicional ao chavismo vem sendo há muito tempo um ônus político relevante para o PT. Esse ônus poderá ganhar força neste ano, justamente às vésperas das eleições municipais brasileiras.
Mais um passo à desoneração
Correio Braziliense
Com a nova MP, o Executivo deixaria de arrecadar R$ 12 bilhões. Agora, esse valor subirá para R$ 16 bilhões, caso o governo ceda e estenda o benefício aos pequenos municípios, com até 142 mil habitantes, ou seja, R$ 4 bilhões
A taxa de desemprego encerrou 2023 em
7,8%, representando uma queda importante na comparação com a do ano anterior
(9,9%). Em boa parte, o resultado pode ser atribuído à vigência da desoneração
da folha de pagamento de 17 setores produtivos, que garantem mais 9 milhões de
postos de trabalho, inclusive as prefeituras.
Após a aprovação da Reforma Tributária, o
Executivo editou medida provisória, a fim de derrubar a desoneração. Entre
divergências e diálogos apaziguadores, prevaleceu a vontade do Legislativo.
Nova medida provisória, mantendo a desoneração, foi editada, mas excluiu os
governos municipais das lista de beneficiados, o que desagradou parlamentares e
até o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG.
Com a nova MP, o Executivo deixaria de
arrecadar R$ 12 bilhões. Caso o governo ceda e estenda o benefício aos
municípios com até 142 mil habitantes, como defende o presidente do Congresso,
a perda na arrecadação chegará a R$ 16 bilhões. O governo federal argumenta que
essas e outras isenções fiscais podem criar dificuldades para zerar o deficit
das contas públicas no fim deste ano. O país encerrou 2023 com um rombo de R$
249 bilhões nas contas do setor público consolidado. A Frente Parlamentar do
Empreendedorismo (FPE), em nota, destacou que mesmo com a desoneração, a
Receita Federal arrecadou R$ 280,6 bilhões em janeiro. Para grupo, o valor
mostra que há espaço para não penalizar os empreendedores brasileiros.
A antecipação da edição da MP da desoneração
frustrou a expectativa da equipe econômica, que pretendia manter a cobrança até
o fim de março, para avaliar o relatório bimestral de despesas e receitas.
Hoje, a intenção é manter firme a decisão de acabar com o Programa Emergencial
de Retomada do Setor de Eventos (Perse) — um socorro do Estado ao segmento
durante a fase mais crítica da pandemia de covid-19. Como a crise sanitária foi
dissipada com a vacinação em massa, garantindo um certo controle da doença. Mas
não só isso, o programa mereceu duras críticas da área técnica da Receita
Federal, diante dos indícios de abusos e fraudes no desenvolvimento do projeto.
A desoneração do setor produtivo foi criada
em 2011, passando a valer no ano seguinte. Naquele momento, o Brasil enfrentava
profunda crise econômica. Mas o que seria uma medida temporária, para oxigenar
os vários setores, tornou-se definitiva. Hoje, tornou-se quase impossível
eliminar esse benefício dos segmentos que movem a economia nacional.
Embora haja divergências entre a equipe
econômica e os parlamentares, o aumento da oferta de empregos é entendido como
essencial ao país, que enfrenta profundas e grandes desigualdades
socioeconômicas. Mais emprego, mais dinheiro no bolso do trabalhador e, no fim,
mais consumo. Dessa forma, deputados e senadores apostam que a economia voltará
a girar, o que será positivo tanto para o governo quanto para os empresários.
Nessa linha de entendimento — crescimento via maior oferta de empregos —, haverá menor pressão sobre as políticas sociais, que demandam medidas compensatórias, como Bolsa Família e outras iniciativas, exigidas pelos indivíduos em situação de vulnerabilidade socieconômica. Essa compreensão não deixa de ter uma lógica, mas frustra a ideia primária da equipe econômica de estabelecer um modelo equânime, em que todos os brasileiros possam contribuir para o equilíbrio da economia.
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