O Estado de S. Paulo
Uma sociedade em que mal se consegue
distinguir imagens ou falas verdadeiras de imagens ou falas falsas (de conteúdo
político ou não) tende a ser marcada pela desconfiança
No dia 1.º de março, o Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) publicou uma série de 12 resoluções que definiram quais serão
as regras para as eleições municipais deste ano. As resoluções cobriram
diferentes temas: calendário eleitoral, pesquisas eleitorais, prestação de
contas, registro de candidaturas, propaganda eleitoral, entre outros. A
propaganda eleitoral foi objeto da Resolução 23.732/2024, que deu nova redação
à Resolução 23.610/2019. Ali, sobressai a preocupação do TSE com o uso da
inteligência artificial nas disputas eleitorais. A iniciativa do tribunal é
oportuna e remedeia a inação do Congresso Nacional, mas não se pode perder de
vista que a desinformação digital pode ter consequências negativas que
ultrapassam o pleito eleitoral, marcando a sociedade como um todo.
Na citada Resolução 23.732/2024, o TSE estabelece que a utilização, na propaganda eleitoral, “de conteúdo sintético multimídia gerado por meio de inteligência artificial para criar, substituir, (...) alterar a velocidade ou sobrepor imagens ou sons” impõe ao responsável pela propaganda “o dever de informar, de modo explícito, destacado e acessível que o conteúdo foi fabricado ou manipulado e a tecnologia utilizada”. Além disso, a mesma resolução proíbe o uso “de conteúdo sintético em formato de áudio, vídeo ou combinação de ambos, que tenha sido gerado ou manipulado digitalmente (...) para criar, substituir ou alterar imagem ou voz de pessoa viva, falecida ou fictícia (deep fake)”.
Compreende-se o veto aos deep fakes. Como se
viu na recente disputa entre Javier Milei e Sergio Massa pela presidência
argentina, essa tecnologia digital foi usada para adulterar imagens e vídeos,
além de colocar palavras na boca dos candidatos. Os conteúdos assim gerados
normalmente recebiam rótulos alertando sua produção artificial. No entanto,
como destacado neste jornal, alguns eleitores passaram a duvidar da realidade
mesmo na ausência da inteligência artificial. Exemplo disso foi o vídeo que
mostrava Massa aparentemente exausto após um evento de campanha. O vídeo era
verdadeiro, mas gerou teorias (não comprovadas) de que o então candidato estava
sob o efeito de drogas (Eleição na Argentina é a primeira da era da
inteligência artificial, 16/11/2023).
Ou seja, atualmente, tanto imagens, vídeos e
falas verídicos quanto imagens, vídeos e falas inverídicos são obstáculos à
compreensão do eleitor acerca do que é real. Isso tem claras implicações no que
se refere à sua liberdade política, valor primordial da democracia.
Essa liberdade supõe que a opinião política
de cada um possa se formar sem distorções. Um voto baseado em informações
duvidosas ou inverídicas é um voto consciente apenas num sentido restrito, e
uma campanha eleitoral que se valha dos instrumentos tecnológicos citados aqui
para alterar ou obscurecer a verdade dos fatos atua contra a livre escolha do
eleitor. Aliás, não só atua contra essa livre escolha, como deixa de lado
aquilo que poderia interessar prioritariamente ao eleitor, isto é, as ideias e
os programas dos candidatos.
A questão vai além da esfera eleitoral.
Afinal, uma sociedade em que mal se consegue distinguir imagens ou falas
verdadeiras de imagens ou falas falsas (de conteúdo político ou não) tende a
ser marcada pela desconfiança. Uma ampla desconfiança, que alcança(rá) não só
as instituições públicas, como o Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional
ou as Forças Armadas, mas também os próprios cidadãos.
Uma sociedade marcada pela desconfiança
cultiva cidadãos isolados, fechados em grupos restritos e incapazes de
agregar-se com base em interesses comuns, como requer uma democracia saudável.
Infelizmente, este é um caminho que o Brasil já começou a trilhar.
Uma indicação nesse sentido vem do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID). Como já destacado neste espaço, num
relatório de 2022 o BID apurou que, na América Latina e no Caribe, o Brasil é o
país onde há menos confiança, entendida ali como “a crença de que os outros não
agirão de maneira oportunista”; como “fé nos outros – em sua honestidade,
confiabilidade e boa vontade”, seja no setor público, no setor privado ou no
âmbito interpessoal.
Não é exagero afirmar que, quanto menor essa
confiança, menor a coesão social, menores a colaboração e o diálogo entre as
pessoas. Num exemplo que combina o isolamento à polarização acirrada dos nossos
tempos, Fernando Gabeira se pergunta, em artigo neste jornal: “Vivemos uma
epidemia de dengue que poderia ser mais bem combatida com iniciativas de
vizinhança destinadas a remover os focos de proliferação do mosquito. Como
realizar isso entre vizinhos que se detestam?” (A desolação da realidade num
país polarizado, 1.º/3/2024).
De fato, é difícil convencer cidadãos que nem
sempre podem crer no que veem e ouvem a crer em valores abstratos como a
igualdade política e a solidariedade social. Nessa toada, não só os robôs
ficarão sempre mais parecidos conosco; nós também ficaremos mais parecidos com
eles.
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