O Globo
O fundamentalismo político, agora sob as
redes sociais, tem dinamitado a vida em sociedade
O aiatolá Khomeini impressionou o mundo ao
derrubar o xá Reza Pahlavi em 1979. Com seu olhar severo, a partir de Paris,
comandou a insurreição contra o monarca iraniano (lá mantido pelos americanos).
Ao que eu saiba, foi o primeiro a provocar a queda de um regime usando apenas o
telefone.
Pahlavi deu trela. Vendia a imagem de
bon-vivant, de um governante moderno e ocidental. Espécie de playboy persa, ao
lado de sua bela mulher, a rainha Farah Diba, cuja coroa fora assinada pelos
joalheiros Van Cleef & Arpels. Era encenação: por trás da imagem, dava
guarida a uma corja corrupta.
Na aparência, Khomeini era seu oposto. Sisudo, barbudo e não afeito a luxos terrenos ou à cultura. Depois de anos de exílio na França, voltava ainda mais fanático. Atrás da estampa, havia um religioso sedento por vingança. Não titubeou em mandar matar vários adversários de sua fé e de sua intransigência política. Pela força, levou a laica sociedade iraniana a retroagir à Idade Média, em crenças e desejos.
Uma de suas vítimas mais célebres, o autor
anglo-indiano Salman Rushdie, reapareceu na semana passada no coquetel de
lançamento de seu novo livro — “Faca”. Era uma festa privada num restaurante de
Manhattan, oferecida pela revista on-line Air Mail, onde se reuniu com
escritores, editores e jornalistas. Os amigos se impressionaram com sua
disposição e bom humor, achando-o elegante num blazer esverdeado e de óculos
com uma das lentes totalmente escura. Sua figura agora lembra a do pirata com
tapa-olho. Há dois anos, Rushdie sofreu um atentado. Sobreviveu às 12 facadas
que perfuraram diversas partes de seu corpo, cortaram seu rosto, além de
macularem seu olho direito, que ficou dependurado no rosto “feito um ovo
cozido”.
Quem tentou matá-lo atendia a uma fatwa
emitida por Khomeini 30 anos atrás. O aiatolá forjou a mentira de que “Os
versos satânicos”, obra de Rushdie, vilipendiavam o profeta Maomé. E assim o
condenava à morte. Depois de viver anos escondido, o escritor foi alcançado por
um chacal numa pequena cidade no upstate de Nova York. “Faca”, um livro de
memórias, reconstrói o atentado e sua recuperação. “A obra não traz ódio”,
adiantou Rushdie.
Khomeini morreu em 1989, aos 86 anos,
no Irã.
Rushdie sofreu o atentado em agosto de 2022, nos Estados Unidos, aos 74 anos. A
distância no tempo revela a força e o alcance prático de uma mentira política,
que no contexto contemporâneo poderíamos chamar de fake news. O aiatolá
desejava impor os ditames de sua religião aos alcunhados “ímpios”. Era ainda um
leitor iletrado. “Os versos satânicos” são uma obra poética, baseada numa lenda
islamita e na própria vida do escritor, dividido entre a tradição persa e
muçulmana e a contemporaneidade ocidental.
O uso da religião pela política, entre várias
outras mortes, também está presente no massacre dos jornalistas do satírico
Charlie Hebdo, na Paris de 2015. Qual Rushdie, alguns dos chargistas
assassinados constavam de uma lista divulgada pela Al-Qaeda como alvos a ser
abatidos. Sim, eram “ímpios”.
No germe da intolerância, a mentira e a
incivilidade. O conceito revolucionário da urbanidade pressupõe o convívio de
diferentes crenças, opiniões e gostos. Para a proteção de tal liberdade de
escolha, ao final em defesa da própria vida cidadã, a civilização precisou
criar regras e leis. Existem avanços e retrocessos, e mesmo os fracassos
fornecem sinais. O fundamentalismo político, agora sob as redes sociais, tem
dinamitado o arcabouço da vida em sociedade. Busca-se aplicar uma visão da
antiga tribo ao cotidiano contemporâneo. Preconceitos e frustrações ajudam a
criar clivagens. Mundo afora, o almoço familiar dominical virou um campo de
guerra.
O Homo bolsonarus, da mesma cepa do
aiatolá, defende a liberdade de expressão enquanto martela nas redes sociais
reincidentes mentiras. Assim se enxerga livre para atirar. O novo discurso
deles constrói a irrealidade de que o Brasil vive numa ditadura! Falam até numa
ditadura judiciária. Os golpistas do 8 de Janeiro difundem o cenário de um
Brasil avenezuelado, sem processo legal.
Rushdie não blasfemou contra o profeta Maomé,
como Khomeini e os mercenários da Al-Qaeda difundiram em fake news. Nem o
Brasil vive numa ditadura ou Lula transformou o país numa Venezuela. Rushdie
vive escondido, com medo de ser morto ou perder o olho esquerdo. Mas seu algoz
aguarda julgamento numa prisão americana, para mostrar que a vida e a liberdade
de expressão são direitos fundamentais do Homo sapiens.
Um comentário:
''Homo bolsonarus'',adorei,rs.
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