terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Entre a Constituição e a conjuntura, por Renato Janine Ribeiro

Folha de S. Paulo

Interferência do STF tem sido pequena, apenas no que é obviamente criminal; ainda se está aquém do que se poderia ou, talvez, deveria

Majoritária no Congresso, extrema direita está afrontando a Carta de 1988

A atual discussão política brasileira omite uma questão crucial. Nossa Constituição, adotada em 1988, não se limita, como a dos EUA, a desenhar a máquina do Estado. Ela define a sociedade que o Brasil quer ser: justa, solidária, sem pobreza, com as pessoas tendo uma série de direitos —educação e saúde para todos, acesso a cultura e lazer—; enfim, uma série de valores inspirados no que o século 20 aprendeu de melhor após duas guerras mundiais e dois totalitarismos opostos.

O essencial é que o conteúdo da Constituição fique acima da divisão partidária: na disputa entre direita e esquerda, ambas devem atender às finalidades previstas na Constituição —uma com mais políticas sociais e intervenção estatal, outra com mais liberalismo e menos regulação—, mas sempre no espírito da Carta. Qualquer governo deveria aumentar o salário mínimo, melhorar a distribuição de renda, combater a injustiça social, elevar a expectativa de vida, diminuir a mortalidade infantil e garantir uma educação cada vez melhor.

Seriam meios diferentes para atingir fins consensuados. O grande problema é que alguns desses objetivos demoram a ser atendidos. O aumento real do salário mínimo, como política constante de Estado, começou nos governos Lula, mas enfrentou e ainda enfrenta oposição, inclusive de setores democratas de direita. Isso embora seu valor ainda seja menor do que o determinado na Constituição.

Tudo foi piorado pelos anos de Jair Bolsonaro, cujo governo era contrário ao espírito e à letra da Carta de 1988. A questão é: pode um governo descumprir radicalmente o lado programático da Constituição? Pode, em vez de eleger os meios adequados para cumprir os valores éticos nela previstos, decidir destruí-los?

A questão é grave porque põe em conflito a vontade do povo expressa nas urnas num momento e o que está previsto na Constituição, mais permanente. Sim, é complicado invalidar o resultado das urnas em função de um texto, por importante que seja. Contudo, limitações deveriam existir. Elas foram timidamente reconhecidas durante o mandato de Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal.

Timidamente porque o STF basicamente determinou o respeito à legalidade eleitoral —e ficou nisso: estabeleceu que as eleições deviam ser limpas (como foram) e que a insurreição contra elas é crime (como de fato é). Mas não entrou no mérito de políticas frontalmente contrárias aos valores constitucionais. O governo passado devastou o meio ambiente, gerou a morte de indígenas em escala superior ao natural, perseguiu a educação e piorou a saúde no Brasil —tudo sem uma atuação judiciária efetiva.

Ora, poderia e deveria o Poder Judiciário interferir para assegurar o respeito à Constituição? Temos aqui uma sinuca. Por um lado, um governo não pode violar os princípios constitucionais: um governo de esquerda não poderia abolir a propriedade privada dos meios de produção, ainda que o quisesse; nem um governo de direita promover políticas de segurança pública que chacinem pobres, pretos e periféricos.

A interferência do Supremo tem sido pequena, ocorrendo apenas no que é obviamente criminal: primeiro, no descumprimento da vontade das urnas e no golpismo, levando à condenação e prisão dos golpistas; segundo, no desvio de verbas ou associação direta com o crime, como nas decisões do ministro Flávio Dino sobre emendas parlamentares e no recente encarceramento de um político fluminense.

Contudo, se isso já gera gritaria contra um suposto "ativismo judicial", é bom lembrar que ainda se está aquém do que se poderia ou, talvez, deveria: entrar no conteúdo das políticas públicas e ordenar que se cumpram os artigos iniciais e os capítulos finais da Constituição —os que defendem os direitos do indivíduo, da sociedade e estabelecem políticas públicas cruciais para que o Brasil seja, de fato, decente.

Esse é um problema que temos que encarar —ainda mais porque a extrema direita, majoritária no Congresso, está afrontando conscientemente a Constituição. E é óbvio que leis ou decretos legislativos não podem violá-la.

 

Nenhum comentário: