Folha de S. Paulo
Interferência do STF tem sido pequena, apenas
no que é obviamente criminal; ainda se está aquém do que se poderia ou, talvez,
deveria
Majoritária no Congresso, extrema direita
está afrontando a Carta de 1988
A atual discussão política brasileira omite
uma questão crucial. Nossa Constituição,
adotada em 1988, não se limita, como a dos EUA, a desenhar a máquina do Estado.
Ela define a sociedade que o Brasil quer ser: justa, solidária, sem pobreza,
com as pessoas tendo uma série de direitos —educação e saúde para todos, acesso
a cultura e lazer—; enfim, uma série de valores inspirados no que o século 20
aprendeu de melhor após duas guerras mundiais e dois totalitarismos opostos.
O essencial é que o conteúdo da Constituição fique acima da divisão partidária: na disputa entre direita e esquerda, ambas devem atender às finalidades previstas na Constituição —uma com mais políticas sociais e intervenção estatal, outra com mais liberalismo e menos regulação—, mas sempre no espírito da Carta. Qualquer governo deveria aumentar o salário mínimo, melhorar a distribuição de renda, combater a injustiça social, elevar a expectativa de vida, diminuir a mortalidade infantil e garantir uma educação cada vez melhor.
Seriam meios diferentes para atingir fins
consensuados. O grande problema é que alguns desses objetivos demoram a ser
atendidos. O aumento real do salário mínimo, como política constante de Estado,
começou nos governos Lula,
mas enfrentou e ainda enfrenta oposição, inclusive de setores democratas de
direita. Isso embora seu valor ainda seja menor do que o determinado na
Constituição.
Tudo foi piorado pelos anos de Jair
Bolsonaro, cujo governo era contrário ao espírito e à letra da Carta
de 1988. A questão é: pode um governo descumprir radicalmente o lado
programático da Constituição? Pode, em vez de eleger os meios adequados para
cumprir os valores éticos nela previstos, decidir destruí-los?
A questão é grave porque põe em conflito a
vontade do povo expressa nas urnas num momento e o que está previsto na
Constituição, mais permanente. Sim, é complicado invalidar o resultado das
urnas em função de um texto, por importante que seja. Contudo, limitações
deveriam existir. Elas foram timidamente reconhecidas durante o mandato de
Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal.
Timidamente porque o STF basicamente
determinou o respeito à legalidade eleitoral —e ficou nisso: estabeleceu que as
eleições deviam ser limpas (como foram) e que a insurreição
contra elas é crime (como de fato é). Mas não entrou no mérito
de políticas frontalmente contrárias aos valores constitucionais. O governo
passado devastou o meio ambiente, gerou a morte de indígenas em escala superior
ao natural, perseguiu a educação e piorou a saúde no Brasil —tudo sem uma
atuação judiciária efetiva.
Ora, poderia e deveria o Poder Judiciário
interferir para assegurar o respeito à Constituição? Temos aqui uma sinuca.
Por um lado, um governo não pode violar os princípios constitucionais: um
governo de esquerda não poderia abolir a propriedade privada dos meios de
produção, ainda que o quisesse; nem um governo de direita promover políticas de
segurança pública que chacinem pobres, pretos e periféricos.
A interferência do Supremo tem sido pequena,
ocorrendo apenas no que é obviamente criminal: primeiro, no descumprimento da
vontade das urnas e no golpismo, levando à condenação e prisão dos golpistas;
segundo, no desvio de verbas ou associação direta com o crime, como nas
decisões do ministro Flávio Dino sobre emendas
parlamentares e no recente
encarceramento de um político fluminense.
Contudo, se isso já gera gritaria contra
um suposto
"ativismo judicial", é bom lembrar que ainda se está aquém
do que se poderia ou, talvez, deveria: entrar no conteúdo das políticas
públicas e ordenar que se cumpram os artigos iniciais e os capítulos finais da
Constituição —os que defendem os direitos do indivíduo, da sociedade e
estabelecem políticas públicas cruciais para que o Brasil seja, de fato,
decente.
Esse é um problema que temos que encarar
—ainda mais porque a extrema direita, majoritária no Congresso, está afrontando
conscientemente a Constituição. E é óbvio que leis ou decretos legislativos não
podem violá-la.

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