terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Violência está ligada à crise da masculinidade, por Fernando Gabeira

O Globo

O retorno conservador à vida doméstica tradicional se mostra cada vez mais improvável diante do avanço da sociedade

No fim de novembro, um homem atropelou propositalmente uma mulher, arrastando-a por mais de 1 quilômetro. Ela teve as pernas amputadas. Os casos de violência aguda não cessam de aparecer, ampliando as estatísticas de feminicídio no Brasil. Talvez valha a pena analisar isso como problema mais profundo. A grande transição vivida pela sociedade merece uma visão política mais ampla.

Nos Estados Unidos, o debate é intenso, como mostra Oliver Stuenkel. O que acontece com os homens, perguntam os analistas? O desempenho deles é mais baixo nas escolas e universidades, eles sofrem mais de depressão e alcoolismo e são mais inclinados ao radicalismo político. Um dos setores mais violentos da extrema direita são os celibatários involuntários (incels), que atacam feministas nas redes sociais, atribuindo a elas seu fracasso sentimental. Eles inspiraram um jovem que matou dez pessoas em Toronto.

Conservadores acham que o caminho é limitar a ascensão profissional e educacional das mulheres. Segundo eles, isso afeta a imagem masculina, baseada na expectativa de salários mais altos e menos tempo para trabalhos domésticos. O problema é que o gênio não pode mais voltar para a lâmpada. Duas em cinco famílias americanas têm mulheres como provedoras.

Como mostra Stuenkel em post sobre a crise americana, as saídas apresentadas até agora para o problema não são muito eficazes. O livro “Masculinidade”, do senador Josh Hawley, propõe coragem e resiliência, conselhos que valem para todos, homens e mulheres.

No caso brasileiro, ainda é preciso avançar nas políticas que garantem igualdade de condições para as mulheres. E sobretudo tentar atenuar a violência desse período de grande transição. Um dos caminhos que me parecem corretos desde o século passado é a criação de abrigos para mulheres espancadas. Elas precisam sair de casa. Forçadas a conviver com o agressor, muitas são assassinadas.

Mas não existe ainda reflexão sobre o que fazer com a crise masculina, que, por meio da internet, torna-se muito parecida com a dos Estados Unidos. O homem que atacou o site de Janja declarou que conhecia os incels. Há muitas razões para tentar abordar a crise masculina numa transição irreversível. A mais importante é evitar que as mulheres sofram. A outra, mais estratégica, é evitar que essa frustração masculina seja canalizada pela extrema direita e se revele como uma de suas alas mais combativas.

A onda de violência contra mulheres é apenas uma face dessa imensa crise. Estamos no meio dela, não temos soluções prontas, mas o debate precisa começar. Dos caminhos que surgiram, a radicalização dos incels é a mais perigosa. O retorno conservador à vida doméstica tradicional se mostra cada vez mais improvável diante do avanço da sociedade. Resta apenas a adaptação construtiva, por meio de uma luta cultural em que se fortaleçam modelos saudáveis de masculinidade, e o trabalho na educação levando em conta que meninos e meninas enfrentam problemas específicos, evidentemente sem recuar nas conquistas femininas.

 

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