DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)
Ajuda humanitária, pacifismo, autodefesa - guerras começam com palavras truncadas, fatos dúbios, conceitos pervertidos, bandeiras adulteradas. Restabelecer significados pode ser o primeiro passo para desarmar os espíritos.
A tragédia do Mavi Marmara pode ser sucedida por outra, protagonizada pelo vapor Rachel Corrie com bandeira irlandesa, desgarrado da flotilha que deixou a Turquia e se dirigia à Faixa de Gaza para furar o bloqueio israelense.
Um mínimo de sensatez das partes pode evitar a repetição do episódio. Repetição evitada – ou pelo menos adiada – neutralizadas as paixões, criam-se imediatamente as condições para que a plateia global perceba com alguma precisão os contornos de um vulcão em irrupção há 63 anos.
Não se trata de recompilar todos os fatos que culminaram com a partilha da Palestina mas de desativar os dois vetores responsáveis pela contínua tensão que a ela se seguiu: a negação ao direito de existência de Israel e, como consequência, a obsessão israelense pelo uso exclusivo da força militar.
Forçado pelas constantes tentativas de varrê-lo do mapa, Israel meteu-se numa Linha Maginot esquecido de que não existem fortalezas inexpugnáveis. Obrigado a proteger-se num bunker há pelo menos três gerações, o país desenvolveu as neuroses e obsessões características de quem vive em permanente estado de sítio. A situação agravou-se há duas décadas com o fortalecimento de duas forças políticas insanas e aliadas – o fundamentalismo religioso e o nacionalismo de extrema-direita. Um era inexistente, o outro sempre esteve controlado ao longo dos primeiros 30 anos da biografia do País.
Israel sairá do bunker quando perceber a sua inutilidade. A devastadora derrota sofrida por Israel a partir da madrugada deste 31 de maio não foi causada por um ataque terrorista ou uma saraivada de mísseis iranianos mas por um velho e inofensivo ferry-boat mediterrâneo, nau-capitânia de uma flotilha turca. A incursão que encostou Israel contra a parede estava prevista há meses, mas a arrogância impediu que uma inovadora ação política de entidades islâmicas fosse contornada e desativada com igual criatividade e na mesma esfera. Israel não soube manter o seu único aliado islâmico: por mais de meio século a Turquia foi um fiel parceiro de Israel em todos os campos, inclusive militar. O progressivo afastamento do país do rígido secularismo implantado por Kemal Ataturk nos anos 20 do século passado e a re-islamização orquestrada pelo atual premiê Recyp Erdogan criaram as condições para que a tática de retaliações desproporcionais adotada pelos generais israelenses servisse de pretexto para um estranhamento e, em seguida, para um afastamento. Turquia e Israel estão irremediavelmente desgarrados. E isto é uma péssima notícia – para ambos. Inclusive para o Brasil que vê o seu parceiro do acordo nuclear com o Irã deixar a neutralidade e passar para o outro lado.
O chauvinismo da coalizão formada pelos religiosos e a direita israelense deixa isolado um Estado criado, mantido e louvado pelo consenso da comunidade internacional. Israel não pode ficar de costas para o mundo. É ilusória a percepção das lideranças israelenses de que os EUA endossarão todos os seus atos, mesmo os estúpidos.
A comunidade judaica americana é forte, articulada, os dois partidos a cortejam, mas convém reparar que o ex-presidente Jimmy Carter é hoje um dos mais rigorosos críticos de Israel no tocante aos palestinos e Hilary Clinton não esconde a sua irritação com as sucessivas malandragens armadas pelo governo de Benjamin Netanyahu. O próprio presidente Obama está mudando de tom: a despeito da proximidade das eleições a Casa Branca não pode ignorar que uma das nove vítimas do ataque ao Mavi Marmara era um jovem turco nascido nos EUA. Não ignora também que Rachel Corrie era uma ativista americana morta em 2003 na Faixa de Gaza ao enfrentar uma escavadeira israelense que derrubava casas palestinas. O barco que leva o seu nome poderá entrar para história como pavio de uma explosão ou réstia de esperança.
» Alberto Dines é jornalista
Ajuda humanitária, pacifismo, autodefesa - guerras começam com palavras truncadas, fatos dúbios, conceitos pervertidos, bandeiras adulteradas. Restabelecer significados pode ser o primeiro passo para desarmar os espíritos.
A tragédia do Mavi Marmara pode ser sucedida por outra, protagonizada pelo vapor Rachel Corrie com bandeira irlandesa, desgarrado da flotilha que deixou a Turquia e se dirigia à Faixa de Gaza para furar o bloqueio israelense.
Um mínimo de sensatez das partes pode evitar a repetição do episódio. Repetição evitada – ou pelo menos adiada – neutralizadas as paixões, criam-se imediatamente as condições para que a plateia global perceba com alguma precisão os contornos de um vulcão em irrupção há 63 anos.
Não se trata de recompilar todos os fatos que culminaram com a partilha da Palestina mas de desativar os dois vetores responsáveis pela contínua tensão que a ela se seguiu: a negação ao direito de existência de Israel e, como consequência, a obsessão israelense pelo uso exclusivo da força militar.
Forçado pelas constantes tentativas de varrê-lo do mapa, Israel meteu-se numa Linha Maginot esquecido de que não existem fortalezas inexpugnáveis. Obrigado a proteger-se num bunker há pelo menos três gerações, o país desenvolveu as neuroses e obsessões características de quem vive em permanente estado de sítio. A situação agravou-se há duas décadas com o fortalecimento de duas forças políticas insanas e aliadas – o fundamentalismo religioso e o nacionalismo de extrema-direita. Um era inexistente, o outro sempre esteve controlado ao longo dos primeiros 30 anos da biografia do País.
Israel sairá do bunker quando perceber a sua inutilidade. A devastadora derrota sofrida por Israel a partir da madrugada deste 31 de maio não foi causada por um ataque terrorista ou uma saraivada de mísseis iranianos mas por um velho e inofensivo ferry-boat mediterrâneo, nau-capitânia de uma flotilha turca. A incursão que encostou Israel contra a parede estava prevista há meses, mas a arrogância impediu que uma inovadora ação política de entidades islâmicas fosse contornada e desativada com igual criatividade e na mesma esfera. Israel não soube manter o seu único aliado islâmico: por mais de meio século a Turquia foi um fiel parceiro de Israel em todos os campos, inclusive militar. O progressivo afastamento do país do rígido secularismo implantado por Kemal Ataturk nos anos 20 do século passado e a re-islamização orquestrada pelo atual premiê Recyp Erdogan criaram as condições para que a tática de retaliações desproporcionais adotada pelos generais israelenses servisse de pretexto para um estranhamento e, em seguida, para um afastamento. Turquia e Israel estão irremediavelmente desgarrados. E isto é uma péssima notícia – para ambos. Inclusive para o Brasil que vê o seu parceiro do acordo nuclear com o Irã deixar a neutralidade e passar para o outro lado.
O chauvinismo da coalizão formada pelos religiosos e a direita israelense deixa isolado um Estado criado, mantido e louvado pelo consenso da comunidade internacional. Israel não pode ficar de costas para o mundo. É ilusória a percepção das lideranças israelenses de que os EUA endossarão todos os seus atos, mesmo os estúpidos.
A comunidade judaica americana é forte, articulada, os dois partidos a cortejam, mas convém reparar que o ex-presidente Jimmy Carter é hoje um dos mais rigorosos críticos de Israel no tocante aos palestinos e Hilary Clinton não esconde a sua irritação com as sucessivas malandragens armadas pelo governo de Benjamin Netanyahu. O próprio presidente Obama está mudando de tom: a despeito da proximidade das eleições a Casa Branca não pode ignorar que uma das nove vítimas do ataque ao Mavi Marmara era um jovem turco nascido nos EUA. Não ignora também que Rachel Corrie era uma ativista americana morta em 2003 na Faixa de Gaza ao enfrentar uma escavadeira israelense que derrubava casas palestinas. O barco que leva o seu nome poderá entrar para história como pavio de uma explosão ou réstia de esperança.
» Alberto Dines é jornalista
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