Um tema difícil, um tanto indigesto e sem dúvida espinhoso é se há ou não entre nós, no Brasil ou em toda a América Latina, um aumento perceptível no que se poderia chamar de fadiga valorativa com a democracia.
Nas redes sociais, nós nos deparamos a todo momento com percepções e sentimentos negativos a respeito dos mecanismos eleitorais e dos partidos políticos; razões para isso não faltam, mas frustrações desse tipo não são um fenômeno recente.
É perfeitamente possível que as mencionadas frustrações tenham se tornado mais intensas ou mais azedas nos últimos anos em vista da enorme sucessão de escândalos a que o país vem assistindo. Percepções negativas do funcionamento institucional combinadas com a corrupção que tem jorrado dos três Poderes compõem um coquetel preocupante, quanto a isto não há dúvida.
Ousemos dar mais um passo. Toda vez que esse assunto vem à tona, surge certo temor em relação à própria democracia. Conjectura-se, invariavelmente, que o regime democrático possa estar perdendo legitimidade – ou apoio moral, o que vem a ser a mesma coisa. Estará a democracia novamente em risco no Brasil, ou em nosso hemisfério? Eu não penso isso, mas vejo utilidade em destrinchar metodicamente a questão.
É óbvio que as democracias não têm todas a mesma qualidade, a mesma vitalidade ou a mesma capacidade de resistir a impactos negativos. A esse respeito, a história do século 20 foi imensamente instrutiva. Produziu uma lista enorme de países onde crises extremamente graves levaram à ruptura do regime constitucional e da própria democracia; não preciso me estender aqui sobre o coquetel maligno que produz tais episódios, mas não custa lembrar que geralmente envolvem problemas econômicos, impasses políticos, exacerbação ideológica, intensificação dos conflitos sociais e surgimento de “salvadores” civis ou militares). Depois de algum tempo a democracia se torna outra vez necessária, de um lado porque o repertório farsesco das ditaduras mais cedo ou mais tarde se esgota, de outro porque as estruturas econômicas e sociais só podem funcionar a contento onde há flexibilidade, racionalidade e transparência. Assim, mesmo onde a ruptura tenha ocorrido em meio a conflitos sérios, o regime constitucional-democrático mais cedo ou mais tarde é restabelecido.
O que acabo de dizer obviamente não chega a ser uma “análise” – será no máximo uma evocação, tal o seu esquematismo e sua simplicidade -, mas isso é da natureza deste veículo: blog é blog, não é livro acadêmico. Penso, no entanto, que algumas questões pouco discutidas precisam começar a ser discutidas mesmo nesse nível genérico. Uma delas é um certo esquecimento dos custos que toda quebra constitucional e toda ditadura impõem à sociedade. Não estou aqui me referindo a mensurações precisas – e nem sei se algo existe algo nessa linha-, mas à rapidez com que a memória histórica tende a se esvair, sobretudo nas gerações jovens, e mesmo nas camadas com mais acesso a informações. Como é óbvio, com a rarefação da memória, a sociedade tende a perder o foco nos custos do autoritarismo, não necessariamente custos econômicos, mas os custos associados à violência e à repressão, os sofrimentos que invariavelmente acontecem, além de custos que só virão a ser percebidos mais adiante, sob a forma de atraso político e cultural.
Felizmente, na América Latina, a quebra pura e simples de regimes constitucionais e sua substituição por ditaduras escancaradas é hoje muito mais difícil que meio século atrás. Parece-me porém fora de dúvida que as democracias da região vem sendo corroídas de diversas formas: eis aqui o segundo ponto que desejava levantar neste post. Uma dessas formas é o populismo, vitriólico num caso, disfarçado noutro, mas sempre pernicioso, quanto a isto não cabe dúvida.
Outro problema que por ora não me parece agudo, mas pode eventualmente se manifestar é o da rejeição do sistema democrático-representativo e uma tendência a “trocá-lo”, no plano da imaginação, não necessariamente por ditaduras à maneira antiga, mas por alternativas supostamente viáveis ou francamente fantasiosas de “democracia direta”. As atitudes de rejeição a que me refiro não se formam apenas no contexto de crises dramáticas. Isso pode também acontecer em tempos relativamente normais e a partir de grupos sociais movidos pelas melhores intenções possíveis. Em qualquer país, como um óleo vazando de algum lugar, sempre há “rebeldes sem causa” de todos os tipos e tamanhos: jovens impacientes com o lento andar da carruagem, intelectuais levados por certo pendor romântico a fantasiar soluções mirabolantes para o país e para o mundo, religiosos agoniados com a pobreza ou com o que entendem ser os males da modernidade…-, e por aí vai.
Vou suscitar mais um ponto. Hoje, no Brasil, estamos a observar um processo deveras fascinante: uma parcela expressiva da sociedade – talvez mais nas camadas médias que nas de baixa renda-, adquirindo uma consciência aguda de seus direitos, resistindo ao sufoco da carga tributária e protestando contra a má qualidade dos serviços públicos. Essa conscientização caminha pari passu com a constatação de que os três Poderes da república se deixaram impregnar por níveis até recentemente impensáveis de corrupção – e a verdade é que hoje, no Brasil, quem diz corrupção também diz irresponsabilidade, desperdício, acinte, arrogância e prepotência.
A questão quanto ao ponto anterior é a evolução desse estado de consciência. Uma possibilidade é evidentemente ele esmaecer; cansados, desanimados, sentindo-se impotentes, seus portadores podem se reconcentrar em seus afazeres privados. Outra possibilidade é ele – falo daquele estado de consciência- se manter, mas como uma nebulosa solta aí pelo espaço, girando sobre si mesma, sem rumo nem consistência. A indignação e a propensão a protestar se mantêm, mas não resultam em nada que se possa seriamente chamar de “politização”: um entendimento mais adequado das questões, uma maior capacidade de se organizar com base em agendas realistas etc etc.
Subjacente a tudo isso, parece-me haver uma necessidade real de reflexão: sobre o país em vivemos, desde logo, mas também sobre a política em geral: nossas percepções do poder, do Estado e da democracia, e os objetivos e valores que nos motivam a agir.
FONTE: BOLÍVAR LAMOUNIER
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