Após mais de quatro meses ditando as diretrizes do julgamento do processo mais complexo já ajuizado no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Joaquim Barbosa negou, na semana passada, a prisão imediata dos réus do caso do mensalão condenados pela Corte. Considerando as posições defendidas pelo relator da Ação Penal nº 470 e agora presidente do tribunal durante o julgamento - a maioria acatada pelos seus pares -, a decisão pode, em um primeiro momento, dar ares de recuo do combativo ministro, ovacionado pela opinião pública por condenar poderosos por crimes do colarinho branco. Mas não o é.
Além de seguir a jurisprudência da Suprema Corte, cujo entendimento é o de que a prisão de réus deve ser determinada apenas após o trânsito em julgado de uma ação penal, desde que não haja a necessidade de medida cautelar - o que ocorreria diante de indícios de fuga dos condenados, por exemplo -, Joaquim Barbosa sinaliza que pretende, ao menos por ora, acalmar os ânimos acirrados entre o Poder Judiciário e o Legislativo.
A sinalização vem em boa hora. Não é de hoje que Judiciário e Legislativo se enfrentam diante de questões que transitam na fronteira das atribuições institucionais de cada um dos três Poderes. O mesmo acontece entre Judiciário e Executivo - não é incomum que a Suprema Corte defira pedidos que contrariam interesses do governo, sobretudo quando envolvem políticas públicas cuja gestão é de atribuição dos governantes eleitos pelo povo. É o caso, por exemplo, das inúmeras liminares concedidas pelo Supremo a pacientes que requerem a realização de procedimentos não incluídos na lista do Sistema Único de Saúde (SUS) e negados pela rede hospitalar.
Do STF, espera-se que aplique sua nova jurisprudência
Ainda que os enfrentamentos entre os Poderes sejam recorrentes no Brasil e típicos em um sistema presidencialista como o nosso, o embate atual entre Judiciário e Legislativo ganhou contornos preocupantes nos últimos capítulos da novela jurídica do mensalão. Os nove ministros que concluíram o julgamento entenderam que as condenações impostas aos três réus que detêm mandatos parlamentares culminam na perda de seus direitos políticos, conforme prevê a Constituição Federal. No entanto, a maioria entendeu que a prerrogativa de cassação dos mandatos é do Supremo, e não da Câmara dos Deputados.
O que o Supremo fez, naquele instante, foi interpretar o artigo 55 da Constituição, que prevê a perda do parlamentar que tiver suspensos seus direitos políticos ou que sofrer condenação criminal transitada em julgado. O mesmo artigo determina, no inciso primeiro, que a perda do mandato, no caso de condenação criminal, será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal. O ministro Celso de Mello foi o autor do voto de desempate. Segundo o decano, cabe à Corte decidir pela perda dos mandatos e descumprir sua decisão seria agir de "modo arbitrário e inconstitucional" e entender que "os seus próprios critérios, a sua deliberação e o seu pensamento devem prevalecer sobre os critérios, a deliberação e o pensamento da Suprema Corte".
A decisão provocou reações, como era de se esperar. O presidente da Câmara, deputado federal Marco Maia (PT-RS), a entendeu como uma tentativa de intimidação do Parlamento brasileiro e que o cerne da questão reside, na verdade, no respeito às prerrogativas dos poderes. Estava iniciado o embate, que só fez piorar nos dias seguintes, com a inusitada decisão liminar concedida pelo ministro do Supremo Luiz Fux.
Fiel escudeiro de Joaquim Barbosa durante o julgamento do mensalão, Luiz Fux seguiu o relator em praticamente todas as suas decisões condenatórias e dele não discordou jamais - indo, inclusive, além do rigor do próprio, ao criar um inédito conceito do crime de lavagem de dinheiro, segundo o qual o simples ato de gastar o dinheiro proveniente de um delito antecedente já pode ser considerado lavagem e, assim, sujeito à dupla punição.
Fux pôs mais lenha na fogueira das vaidades intrínsecas a quem detém poder em suas mãos ao determinar que o Congresso Nacional suspendesse a votação dos vetos da presidente Dilma Rousseff à medida provisória dos royalties, que tramitava em regime de urgência. O pedido foi feito pelos deputados Alessandro Molon (PT-RJ) e Hugo Leal (PSC-RJ) e acatado por Fux, para quem os vetos à lei só poderiam ser analisados após a votação de outros três mil vetos que aguardam na fila do Congresso.
Implacável contra os réus do mensalão, Fux não surfa na mesma onda de popularidade de Joaquim Barbosa, aclamado nas ruas por ter condenado os poderosos do mensalão e que, em recente pesquisa publicada pelo jornal "Folha de S.Paulo", aparece com 10% das intenções de voto para a Presidência da República. Mesmo Barbosa, que chegou a afirmar que "não há tirania maior do que a do grande número" e que "essa tirania se estabelece no Parlamento", agora evita, prudentemente, o acirramento do embate, adiando a decisão de determinar a prisão dos condenados no processo do mensalão e, consequentemente, a necessidade de a Câmara decidir se cassa ou não os três parlamentares condenados pela Suprema Corte.
Em lugar do embate, talvez seja o momento do debate. Do Supremo, espera-se que se atenha à guarda da Constituição Federal e que dê continuidade à aplicação da nova jurisprudência criada durante o julgamento do mensalão - que pode, em muito, contribuir para reduzir a sensação de impunidade da população, acostumada a ver apenas pobre na cadeia. Para além das decisões dadas em casos concretos, o exemplo que vem de cima no combate à corrupção tem um efeito não apenas multiplicador, mas educativo. Não há dúvidas de que o julgamento do mensalão levou o Judiciário a ocupar o espaço que lhe cabe da divisão entre os Poderes - o que, por si só, é positivo para a democracia. Resta esperar que o Legislativo rediscuta seu papel e ocupe a cota de responsabilidade que lhe é destinada constitucionalmente, sob pena de estimular ainda mais o ativismo judicial.
Fonte: Valor Econômico
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