Multa chega a 20% do faturamento bruto das empresas
É sabido que no Brasil algumas leis pegam e outras não. A partir de amanhã passa a valer a Lei de Combate à Corrupção, um caso raro de lei que "pegou" antes da vigência, e ficar por isso mesmo depois. Há muita margem para dúvidas. A regulamentação, que sairá por decreto, deve ajudar a explicar boa parte delas, mas só a prática é que dirá se, desta vez, uma lei para combater a corrupção "pegou" de vez no país.
Proposta pelo Lula, aprovada no Congresso e sancionada pela presidente Dilma, a lei estabeleceu um prazo de seis meses para entrar em vigor, um período para a adaptação das empresas. Houve correria aos escritórios de advocacia e a empresas de auditoria, em busca de informações e esclarecimentos para se adequar à lei. Nessas consultas apareceram dúvidas simples, mas também algumas que certamente somente serão esclarecidas em decisões dos tribunais.
Exemplo de consulta fácil: se um despachante da Vale que cuida de seus processos ambientais pagar uma "cervejinha" para um agente público acelerar o processo, a empresa poderá responder objetivamente por isso? A resposta é sim. E os termos, em caso de condenação, são pesados.
A lei prevê que empresas flagradas pagando propina poderão ser multadas em até 20% de seu faturamento. Reincidências como aquelas observadas em escândalos recentes podem levar até a extinção da empresa. "A lei criou a pena de morte para a pessoa jurídica", diz o advogado Igor Tamasauskas, um especialista na matéria. Ele e seu sócio Pier Paolo Bottini estão ordenando os capítulos e fazendo a revisão final de um livro no qual pretendem esclarecer muitas das dúvidas.
"O foco dessa lei é no corruptor", explica Tamasauskas. "Na lei de improbidade o foco é no agente público. A nova legislação cria a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica", diz. Em português claro, a verificação de dolo ou culpa da empresa deixa de ser requisito para a penalização. "Você não vai falar se ela teve intenção ou não de praticar o ato", diz.
A segunda razão para o prazo de seis meses é que a lei exige das empresas a criação de mecanismo de defesa da integridade interna. "Um mecanismo de compliance - a empresa terá de criar uma série de regramentos, de procedimentos e controles para evitar que qualquer agente, funcionário ou contratado a qualquer título em seu nome pratique um ilícito contra o erário". Os mecanismos permitirão, também, às empresas diminuir sensivelmente as multas passíveis de ser aplicadas com base na nova legislação.
Se a lei já estivesse em vigência, certamente poderia ser usada para responsabilizar empresas como a Alstom e a Delta, as estrelas do momento do jornalismo político-policial. Mas iria além. No momento, elas são acusadas de atos em razão de uma pretensão de fornecimento para o Estado. A nova legislação pega outras situações. Se o departamento de pessoal ou da área de tributos de uma empresa, por exemplo, pagar propina para obstruir a fiscalização de uma maneira irregular, a empresa a empresa já está passível aos rigores da lei. "Na verdade, todas as empresas estão sujeitas à essa lei e não apenas contratadas do poder público. Claro que o foco são as fornecedoras do Estado, mas serve para qualquer empresa", afirma Tamasauskas.
Outro exemplo citado nos debates que antecederam a vigência da lei: uma empresa se credencia para participar de uma licitação municipal e o prefeito exige como "prêmio" a contratação ou de um parceiro local. Se ganhar a concorrência e contratar o "parceiro", a empresa estará sujeita às penalidades da lei. E se ela for parte de um grande grupo empresarial, todas suas ramificações também podem ser responsabilizadas. Uma grande empreiteira, por exemplo, com braços nas áreas de saneamento, construção e transporte.
"A responsabilidade para o grupo é solidária", diz o advogado. "Se o braço de saneamento fizer bagunça, todas as demais empresas são solidariamente responsáveis". Segundo Tamasauskas, a lei é bem ampla, "fala de controladora e controlada, coligada ou eventualmente consorciada - e aí está limitada ao próprio contrato de consórcio. E não adianta ao grupo empresarial se organizar e criar uma empresa para fazer as coisas erradas e achar que vai ficar limitada a ela".
Aparentemente é a situação da Técnica Construções, um braço da Construtora Delta, dona de vários negócios com o governo questionados na Justiça. Mas não é bem assim: a empresa precisaria ter sido criada como fraude, mas a constituição da Técnica se deu em processo de recuperação judicial, com fiscalização, portanto, do Ministério Público e do Judiciário.
O que as empresas tentaram, nesses seis meses, foi tentar compreender o alcance da nova lei, quais as condutas estão abrangidas pela possibilidade de punição. A primeira é simples de entender: 'prometer, oferecer diretamente vantagem a agende público'. Outros incisos mostram questões bem mais complexas como financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo (permitir) a prática de ilícito previsto em lei. Tamasauskas refere um caso concreto: "Será que um banco terá de fazer auditoria de integridade na empresa que lhe pedir dinheiro para financiar a concessão de um determinado serviço público"? Sem saber, o banco pode estar financiando uma atividade ilícita.
Outro dispositivo - e talvez o mais delicado de todos - fala em "dificultar atividade de investigação ou de fiscalização" de órgãos, entidades ou agentes públicos. "O que fazer se um fiscal da receita achar que pode abrir um procedimento legal, se o contribuinte deixar de prestar uma informação?", questiona Tamasauskas. O sucesso da nova legislação certamente estará no equilíbrio da aplicação da lei - há de haver um limite para evitar o abuso de poder de um fiscal na ponta, e uma resposta do Judiciário na punição não apenas dos corruptos encastelados no Estado, mas também do corruptor. A Lei de Combate à Corrupção não é invenção brasileira. Já vigora nos EUA, por exemplo. Se pegar, será uma real mudança de paradigma.
Fonte: Valor Econômico
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