- O Estado de S. Paulo
Multidões de brasileiras e brasileiros ocuparam as ruas no dia 15 de março para dizer um basta à corrupção, à mentira, às tentativas de dividir os brasileiros e aos efeitos de uma crise econômica que já se fazem sentir no cotidiano dos cidadãos.
Lula contribuiu para dividir o País. E o fez deliberadamente. Ao início da campanha de 2014, o ex-presidente percebeu, corretamente, que a disputa presidencial de 2014 seria um das mais difíceis das décadas recentes. E acrescentou: "Nós vamos radicalizar. Vai ser nós contra eles".
O confronto entre "nós e eles" é uma bem-sucedida tática eleitoral do Partido dos Trabalhadores (PT). Nós refere-se à população de baixa renda, às famílias com rendimento entre dois e cinco salários mínimos, que aumentou bem acima da média nacional entre 2003 e 2011, o que em si é um fato positivo. Segundo o IBGE, esses segmentos representam 70% da população. Lula mantém uma conexão estreita com eles, fala com naturalidade sua linguagem política e está atento à sua agenda.
Essa conexão criou, por assim dizer, uma fidelização dos eleitores de baixa renda. Do outro lado, eles são as "elites", particularmente os banqueiros, ou seja, a minoria. É curioso notar a extensão desse confronto entre nós e eles ao cenário internacional, pelo pressuposto de um conflito inevitável entre o Sul e o Norte, entre nós e os "loiros de olhos azuis".
Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx retoma Hegel para lembrar que os fatos e personagens importantes da História ocorrem duas vezes. Só que, acrescenta Marx, a primeira vez como drama e a segunda, como farsa. Esse parece ser o nosso caso. Nas eleições anteriores, após o confronto da campanha, o candidato vitorioso do PT buscava a reaproximação e o entendimento, pela intermediação de um ministro habilidoso, como foi Antônio Palocci, ou pelo aceno às benesses a grupos ou empresas. Agora isso não ocorreu, seja pela agressividade da campanha, que deixou cicatrizes, seja pela crise econômica, que impôs a austeridade, em vez da generosidade. Como se não bastasse, o ex-presidente Lula estimulou o confronto ao convocar Stédile a pôr o exército do MST na rua, na defesa do governo.
O confronto entre nós e eles foi eficiente para reforçar a coesão do PT e para ganhar eleições. Mas, neste momento, deixa claro o risco para a governabilidade. O confronto estimula a divisão da sociedade, o conflito e a instabilidade. Promove uma luta de classes dentro da democracia, num país que já está dividido, como mostram as demonstrações nas ruas e o fato de a presidente mais uma vez estar impedida de frequentar espaços públicos nos centros metropolitanos para evitar o constrangimento das vaias. Ela não é percebida como a presidente de todos os brasileiros.
A proposta de impeachment é prematura e, talvez, descabida. A questão real está na governabilidade, que a presidente parece ter perdido, logo ao início do seu novo mandato. Dilma não mostra ter condições para promover a articulação política necessária para a aprovação de um programa econômico efetivo. Como realizar as reformas se os seus próprios eleitores se mostram perplexos com o descompasso entre o que dizia a candidata e o que propõe a governante? Se o próprio PT está dividido e não a apoia com convicção? Se a base aliada no Congresso Nacional está conflagrada contra o Executivo? Depois de vender durante a campanha um Brasil de fantasia, como pedir a compreensão da população para sacrifícios inevitáveis?
A crise que era econômica tornou-se política e, em breve, poderá ser também social, quando os cidadãos perceberem no bolso o avanço da inflação e do desemprego. Se o povo foi à rua em 2013 por alguns centavos da tarifa de ônibus, o que fará quando perceber que a conta de luz subirá este ano, em média, 55% e para as camadas de baixa renda poderá chegar a 100%?
As causas da insatisfação da maioria da população são diversas , mas suas bandeiras ainda são difusas, como não poderia deixar de ser. Os movimentos sociais, organizados ou não, têm força para fazer pressão sobre o sistema político, mas não dispõem dos instrumentos para fazer a intermediação política, que é a função precípua dos partidos, neste caso, sobretudo os da oposição. Não resta dúvida de que o PSDB, o maior deles, tem hoje a determinação para exercer oposição combativa no Congresso. Resta indagar se saberá aproveitar a frustração dos eleitores, inclusive do próprio PT, para convencê-los, numa linguagem apropriada, da procedência de suas críticas e de suas propostas.
Hesitante em relação às correções da economia, fragilizada pela divisão de sua base e do seu próprio partido, Dilma não se dispôs ainda a contar à sociedade toda a verdade sobre a real situação do País, o que é uma precondição para conquistar a compreensão da população e o apoio do Congresso a um programa capaz de tirar o País da crise econômica e política em que se encontra. Ao contrário do que ocorreu em 2013, não será possível desta vez restaurar a popularidade da presidente unicamente com promessas, meias medidas e pelos artifícios de um marketing onipresente.
Sem poder enfrentar o principal, o governo dedica-se ao acessório. Tornou-se uma nau sem rumo. Ora parece ir numa direção, ora sinaliza o caminho contrário. Alimenta a perplexidade dos que não conseguem entender um país em que os que defendem o governo não aceitam as suas políticas e os que estão dispostos a apoiar medidas indispensáveis estão na oposição.
A população não quer mais permanecer impassível perante um governo que pode conduzir o País ao desastre. Caberá aos partidos políticos canalizar a insatisfação das ruas para objetivos políticos claros e consequentes.
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*Sergio Amaral é diplomata, foi secretário de Comunicação Social do governo Fernando Henrique Cardoso
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