• Nosso metafórico caldeirão político está cheio de vermes expostos pela Operação Lava-Jato e pelos imensos desmandos na economia e na política
- O Globo
O hexagrama chinês de número 18 do “I Ching, o livro das mutações” trata do “trabalho sobre o que se deteriorou” e é representado por um caldeirão com vermes. O marxismo, por sua vez, como doutrina econômica, pode já ter sido suplantado pelo fenômeno histórico da revolução tecnológica e científica e pelo duro pragmatismo dos mercados globalizados hodiernos, tendo como melhor exemplo a própria China atual. Mas as transformações históricas necessárias dos processos políticos por ele apontadas, ainda ao tempo da Revolução Industrial, continuam a obedecer a inexorável determinismo reconhecido hoje por pensadores tanto capitalistas como socialistas. Não só a política, mas o próprio mercado se movimenta de modo dialético.
A dialética da natureza aplicada à economia política talvez tenha sido o maior e o mais duradouro legado de Marx e Engels ao pensamento científico atual. Ainda que absorvida, a dialética, do trinômio grego tese-antítese-síntese — num périplo filosófico que passa por Hegel e pela própria observação ancestral pré-socrática dos fenômenos contraditórios da biosfera e do cosmo — continua sendo extraordinária e imorredoura ferramenta no estudo da História e das Ciências Sociais, especialmente da Ciência Política. É praticamente insubstituível essa presença acadêmica da dialética, como método filosófico, para estudar os movimentos políticos, estando presente no taoismo e no confucionismo ancestrais há mais de quatro milênios, mesmo muito antes de os gregos pré-socráticos a codificarem em seus “fragmentos” sete séculos antes da nossa era.
Como isso se adéqua ao Brasil de hoje? Simples: nosso metafórico caldeirão político está cheio de vermes expostos pela Operação LavaJato e pelos imensos desmandos na economia e na política. É a hora de se pôr em prática o “trabalho sobre o que se deteriorou” dos chineses porque, dialeticamente, esta é a saída natural. A cega e obtusa desfaçatez dos que se agarram às nesgas de poder e a revolta indignada dos que propugnam desorganizadamente por mudança imediata requerem, porém, velocidade diversa da atual por parte dos atores e agentes políticos nos poderes da República. Mas não é, infelizmente, o que se vê. As propostas de mudanças são tímidas, levianas e, por que não dizer?, irreais, quando não absurdas. Propor essas indispensáveis mudanças com esse Congresso que aí está, para início de conversa, é inverosímil e infantil. As propostas para um governo de transição gerenciado por quem está no poder há 13 anos e ajudou o país a entrar nesse redemoinho caótico, por outro lado, também são um delírio, sem qualquer contato com a realidade escancarada das ruas e dos índices estatísticos.
Existem não mais de três fórmulas constitucionais prescritas a admitir apear democraticamente do governo a presidente da República:
1) Cassação tardia, pelo TSE, da chapa eleita, aí incluído o vice-presidente;
2) impeachment, em andamento, na forma da lei reguladora, sexagenária, recepcionada pela constituição e regulamentada pelo STF;
3) renúncia, sendo esta última, ato de vontade unilateral da ocupante, improvável pelo próprio temperamento da “presidenta”.
Nenhuma dessas três fórmulas, no entanto, resolve o grave problema da urgente reforma política e fiscal do Estado brasileiro. Esse é o ponto nevrálgico da questão. A única fórmula plausível seria a máxima continuação transitória e tolerável do atual governo, sob os auspícios saneadores da Lava-Jato e seus jurídicos efeitos, tudo supervisionado pelos tribunais superiores, mesmo que a atual presidente da República seja substituída nessa tormenta por seu vice e este convoque imediatamente uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva, paralelamente a esta legislatura, até o seu ocaso constitucional, para que formule a indispensável reforma da Constituição pelo Poder Constituinte Originário, eleito com esse propósito: o de promover uma ampla e profunda reforma do Estado brasileiro, extinguindo partidos e ministérios de aluguel, leiloando pesadas e deficitárias empresas públicas, implantando o voto distrital misto, o sistema parlamentar e tantos outros temas inadiáveis, como a ingente reforma federativa e tributária para tirar a federação brasileira do caos financeiro em que se encontra.
Significa, portanto, convocar as novas lideranças, ainda ocultas na massa inorgânica que se move nas ruas, imediatamente, a assumir a responsabilidade pela reconstrução da nação. Outra República. E isso só se consegue através da convocação imediata de uma Assembleia Nacional Constituinte, exclusiva, para esse fim. Com data para começar e data para apresentar um novo projeto de país. Trazer das ruas esses talentos e lideranças para o seio de um Parlamento Constituinte Originário de transição, a organizar esse discurso poderoso, mas ainda inorgânico. Ou se faz isso com urgência ou caminharemos céleres para a luta fratricida. Verifica-se que a nação hoje está nas mãos de um único poder dos três constituídos: o Judiciário. Caberá ao STF, possivelmente já sob nova presidência nos próximos meses, a quatro mãos com o Poder Constituinte Originário e exclusivo, a corajosa tarefa de reordenamento do nosso sistema político falido, das finanças públicas em colapso desta República em seus malcheirosos estertores. É a última esperança antes que a desordem se estabeleça, como é desejo e única saída buscada pelos eternos pescadores de águas turvas que hoje agonizam, rancorosamente, juntos com esse desgoverno, num grande e perigosíssimo abraço de afogados.
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Nelson Paes Leme é cientista político
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