A Tarde (BA)
O recuo do governo da decisão de extinguir o Ministério da Cultura deve ter naturalmente alegrado os defensores genuínos da causa “fica Minc”. Após o conflito rumoroso que se deu em torno da questão, o tema da cultura pode até vir a ter um lugar melhor na agenda política. Se bem que isso não se deveria tanto à extinção ou à recriação do ministério. A qualidade e a sustentabilidade do lugar político da cultura dependem de mobilização lúcida e prudente de recursos materiais e de diálogo entre diversas experiências de vida civil autônoma, não de convivência tensa (e belicosa) de grupos de interesse no interior de espaços estatais. Vêse, aliás, que o recuo ainda não encerrou os protestos. Por que?
O simbolismo da cultura tem sido usado, no contexto político do impeachment, para tentar desconstruir o simbolismo da democracia. Do aparelhamento político da área, que já deformava a instituição, passouse a uma ação antidemocrática aberta. Pela leviandade com que a falácia do golpe foi e está sendo difundida no Brasil e mundo afora, esse ativismo faccioso do grupo político da Presidente afastada tornase reacionário. Busca desmoralizar o valor central que o controle institucional e constitucional do exercício do poder político e administrativo passou a ter na nossa
democracia, a partir da consolidação da ordem da Constituição de 1988.
Boa parte da área artística e de profissionais da cultura tem, na prática, respaldado a tática de guerrilha desse grupo político cuja visão de mundo dicotômica vaga em franjas e sombras do mundo real desde o fim da guerra fria. Em sua hora crítica no Brasil, essa visão de mundo obtém, naquela área, apoios alguns significativos, ainda que indiretos ao seu intento de dar sobrevida retorica a uma aparente pretensão, politicamente inviável (pois democraticamente inviável), de retorno imediato ao poder.
O conflito em que persiste uma parte politicamente ativa do mundo da cultura, mesmo após o recuo do governo, é contra Temer apenas à flor da pele. O Presidente em exercício e seu governo são acidentes nessa briga. Conflito mais fundo é entre o simbolismo cultural visível que essa parte dos profissionais da área evoca e o imaginário da sociedade “comum”. Menos culta, mas portadora de cultura, ela não mais aceita a lógica dual que passa a mão pela cabeça de contraventores ou ditadores "do bem". A resistência da militância cultural reflete ainda um malestar seu para com novas formas de cidadania individual, emergentes na sociedade. Estigmatizadas por uma esquerda hegemônica que persiste numa guerra finda, essas formas buscam conteúdo “à direita”, numa cultura, digamos, liberal. O profissional governo de Michel Temer não tem, desse conteúdo, sequer o sotaque. Ele é conservador da complexa tradição (antiliberal) da política brasileira.
Dos males dessa tradição (autocracia, patrimonialismo, clientelismo, etc.) falase copiosamente e não muito consequentemente, como mostra, aliás, a trajetória do próprio PT. Mas a tradição não terá virtudes também? Sim, especialmente a da conciliação. A ela se deve o “aborto” de sonhos revolucionários que, de resto, não interagiam com realidades objetivas. Mas também se deve os avanços reais que, processualmente, foram obtidos na superação de atraso econômico, indigência
política, iniquidades sociais e preconceitos culturais.
Recuar perante um movimento de opinião é uma virtude política a que nos desacostumamos. Retóricas facciosas e mistificadoras de lutas de resistência vinham recentemente inibindo, no Estado, a ética e o léxico republicanos e ainda transmitem uma grande dose de maniqueísmo à animação democrática da sociedade. O recuo político do Governo no conflito em torno do Minc, longe de ser “frouxidão”, é uma lufada de ar fresco numa atmosfera rarefeita. Também é resgate de uma boa memória, da banda saudável de nossa tradição política. Durante a ditadura em declínio, o General Geisel avisava a navegantes que não agia sob pressão. Ulisses Guimarães, em seu navegar preciso, replicava: “eu só ajo sob pressão”.
No seu nascimento, em 1985, como agora, na sua ressurreição, o Minc é uma aspiração setorial que pode se combinar com um interesse geral. A condição para tal é que haja uma política cultural de sentido público, como se ensaiou, por exemplo (é justo assinalar) há pouco mais de uma década, nos anos iniciais do primeiro governo Lula. Isso o governo de transição ainda não tem. E atado como se encontra a outras compreensíveis prioridades, não terá sem conversar amplamente com o mundo da cultura.
A flexibilidade agora demonstrada do lado do governo torna legítima a expectativa de elaboração e implementação de uma nova política pública para a área. Conversa é sempre boa cultura, que prevalecerá se a mensagem “fica Minc" se desvencilhar do grito “fora Temer"/volta Dilma".
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[1] Cientista político e professor da UFBA.
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