- O Globo
• Nada mais assustador do que a ausência total de liderança. Por parte do governo Temer, nada a esperar, ainda mais após a bomba nuclear detonada pela Odebrecht
Há uma passagem na obra de Guimarães Rosa que tem tudo a ver com a explosiva situação atual política do Brasil. “Grande Sertão: Veredas” foi incluído no Clube do Livro da Noruega como um dos cem livros mais importantes de todos os tempos. No sertão agressivo e épico das Gerais, estrebucha o líder Medeiro Vaz: “O queixo dele não parava de mexer”... Assim o gênio de Cordisburgo relata a morte do capitão dos jagunços: “Quem vai ficar em meu lugar? Quem capitaneia?”, preocupava-se o moribundo em seus estertores murmurantes. E o olhar percorria o entorno, aflito. Essa a maior preocupação de quem lidera de verdade, ainda que jagunços.
Contraindo-se de dor no divertículo, às vésperas de ser internado no Hospital de Base em Brasília, a maior preocupação de Tancredo Neves nem era com a própria vida, mas com o destino da transição democrática que se iniciava com sua posse e dela dependia dramaticamente. Sem ele, que tudo planejara minuciosamente, quem capitanearia? Ulysses? Sarney? Ou uma reviravolta castrense promovida por Octávio Medeiros retomaria o poder militar em favor do retrocesso? Tancredo sofria muito mais com essa dúvida do que com as próprias dores de sua moléstia. Relutante até o momento em que a dor física o derrubou, não queria se operar do tumor que acabou por levá-lo de vez para outras paragens desse Universo de Deus sem chegar a conduzir a transição democrática, como meticulosa e enxadristicamente matutara.
Tudo foi muito mais confuso e nebuloso no Brasil de 2016 que findou, uma das dez maiores economias do planeta, cotada pelo FMI (rebaixada recentemente) como quarta até 2030, abaixo apenas de China, EUA e Índia, nessa ordem. Crise econômica gravíssima turbinada por crimes políticos medonhos. Empresas gigantescas e seus diretores e acionistas processados junto com políticos do mais alto escalão, muitos já encarcerados e delatando seus asseclas sem qualquer cerimônia. Perda de referências da cidadania. Desânimo e desencanto em ano eleitoral municipal e suas patéticas escolhas sufragadas.
Atores e personagens da história nunca dantes tão medíocres e tão comprometidos com a incúria, com a rapinagem e com a roubalheira geral do Erário. Mas nada mais assustador do que a ausência total de liderança. Por parte do governo Temer, nada mesmo a esperar, ainda mais depois da bomba nuclear detonada pela Odebrecht. Dilma não era nem nunca foi “do ramo”. Além de inepta, suspeita e inapetente, expressava-se miseravelmente em língua pátria. Era a “mulher sapiens” na boca dos humoristas. Virou a grande piada de mau gosto nacional. Lula, considerado o capo di tutti capi, às voltas com a Justiça Federal. A saída estaria no Congresso. Mas quem capitaneia o Congresso? Aponte-se um verdadeiro líder de ficha razoavelmente limpa, com credibilidade e coragem, no nauseabundo Parlamento brasileiro.
Sintomaticamente, os líderes estão, ainda anônimos, em gestação nos movimentos espetaculares que colocam multidões nas ruas, embora absolutamente inorgânicos. Mas existem, certamente. Na década de 1940, no ocaso do Estado Novo, poucos sabiam quem era Carlos Lacerda ou Juscelino Kubitscheck. Eram lideranças em gestação que entrariam 20 anos depois para os compêndios de História do Brasil.
Hoje essas lideranças invisíveis vão dando, pelas redes sociais, as ordens no terreiro e comandando a massa, como na magistral poesia de Gilberto Gil. Vaiam a direita e a esquerda. Vaiam governo e vaiam oposição. Lideram e mobilizam as massas inorgânicas pela internet. Na verdade, estão essas massas repugnadas com a política. Identificam-se com a Polícia Federal, o Ministério Público e apostam na judicialização crescente e avassaladora da política, exatamente porque uma legislatura avacalhada e desmoralizada não se impõe e os partidos políticos, multiplicando-se como células cancerosas, perderam totalmente qualquer vestígio de credibilidade e interação social. Quem capitaneia?
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Nelson Paes Leme é cientista político
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