- Valor Econômico
A contabilidade da política não aguenta auditoria como essa
A política está paralisada pela incerteza, nunca antes como hoje. Um exemplo, o do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus movimentos em um fim de semana atípico, em Brasília, totalmente ao léu, desconectado da realidade. Sem emitir o mais tênue sinal de que é o prêmio de encerramento da Operação Lava-Jato, o já condenado por uma razão, em risco iminente de o ser por outra e com pedido de ampliação de pena antes mesmo de iniciar a primeira caminhada ao calvário, Lula não deu uma palavra sobre o assunto principal da sua vida e a do seu partido nas mais de duas horas em que se enredou com 600 mulheres (segundo os organizadores), presentes à abertura do XII Congresso de Mulheres do PT, no Hotel San Marco, em Brasília.
Era a noite de sábado, dia 7, e a única menção a uma outra realidade veio da plateia onde, ao final, umas jovens mulheres, saídas do fundo do auditório, braços erguidos, entoavam palavras de ordem que provocaram susto e um átimo de tensão: "Lula, ladrão... roubou meu coração". Alívio dos não iniciados que esperavam ter início, com aquele começo de frase, um confronto daqueles.
Que nada, o discurso de Lula tinha sido leve, cheio de evocações das mulheres de sua vida, já mortas: Dona Lindu, sua mãe, e Dona Marisa, sua mulher. As histórias da mãe e da mulher eram as mesmas de sempre, de todas as campanhas eleitorais, de todos os discursos. Uma, criou oito filhos que passaram fome; outra fabricou camisetas no início da vida sindical de seu marido, ajudando-o a fundar um partido político, o PT. Tão batidas que o auditório conversava, em voz alta, fazia fotos de grupos, mulheres saiam e entravam sem parar na sala do encontro.
O discurso de Gleisi Hoffmann, presidente do partido, também era velho, velhíssimo naquela circunstância. Leu uma carta da ex-presidente Dilma Rousseff justificando sua ausência porque estava em caravana, no exterior, para denunciar o "golpe" de que foi vítima com o impeachment. A carta cita um elenco de realizações do seu governo que beneficiaram mulheres: Pronatec, Fies, Minha Casa... o que, segundo Lula, economizou o tempo de suas próprias citações, pois seriam as mesmas.
A presidente da mesa, aos berros, pedia silêncio. Com Lula de pé para falar, avisava para não perderem os crachás porque senão não poderiam voltar no dia seguinte, e ouvia de volta um pedido que parasse de falar pois queriam ouvir Lula. Uma festa.
O Lula ameno fez um discurso sobre mulheres para mulheres, e sugeriu, com ênfase, que fizessem mais política, que se candidatassem, que fossem ativas, mas naquela sua forma peculiar de discursar. As mulheres ouviram exaltação à sua luta doméstica e exortação a trocarem os papéis com seus homens. Embaladas por "Volver a Los 17" e por "Roda Viva", também antigo mas ainda belo fundo musical de outros carnavais participativos, as mulheres iam balbuciando "Como el musguito en la piedra, ay si, si, si"... "tem dias que a gente se sente"... e a algazarra corria solta entre as convidadas a fazerem renascer o PT.
Teve o momento, também esperado, de ataque à mídia e a citação nominal da TV Globo, como sempre, mas aquelas pessoas já estavam doutrinadas a odiar a imprensa e não esboçaram reação, nem aplauso. Foi também antigo o ataque físico de um de seus seguranças, funcionário identificado como sendo do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, a um jornalista que se postou em local proibido com a intenção de fazer uma pergunta a Lula, quando ele passasse. A proteção ainda é presidencial e a truculência, como tudo, bem à moda antiga, embora a sedução parecesse de astro pop.
A tietagem foi condenada pelas próprias participantes de crachá: "Não sei por que isso, afinal não somos o povão, isso aqui é reunião de militantes". Essa levava a sério o apelo a reerguer o PT. Outra, também se afastando do cerco, com visão crítica: "Gostei, ele está bem, achamos que sem a Letícia ele ia ficar deprimido, trancado, mas graças a Deus está bem". Sem quem? A Letícia. Eram pessoas que chamavam Marisa, a mulher de Lula, pelo segundo nome próprio.
Essa delícia de reunião transformou-se radicalmente na segunda feira, tendo pelo meio um domingo de acupuntura. Em um novo encontro, também à noitinha, com militantes da área de educação, Lula deixou surgir a fera condenada. O juiz Sergio Moro havia pedido que apresentasse os originais dos recibos "ideologicamente falsos" que apresentou para comprovar o aluguel do apartamento ao lado daquele onde mora. O discurso de Lula foi raivoso, inflamado, reativo mas, como sempre, também, meramente político. Não disse uma frase para defender suas provas e argumentos. Lula declarou-se ora candidato, ora cabo eleitoral, exigiu ser respeitado e resumiu todos os processos que vem sofrendo à intenção de seus adversários de impedir sua candidatura a presidente.
O Lula que tenta erguer o PT, do sábado à noite, e o Lula que tenta se safar de acusações de corrupção para o imediatismo de uma candidatura, da segunda-feira à noite, são produto desse momento de profunda incerteza na política. Os dois discursos são antigos, repetições enfadonhas desprovidas de autenticidade e sentido. A incerteza é que é nova e dominante.
Ninguém tem a menor ideia do que vai acontecer na política e muito menos na eleição de 2018. Em outros anos, a esta altura, já estariam definidas as regras, começavam as reservas de profissionais de mídia, os marqueteiros formulavam os primeiros planos para as primeiras gravações, a guerra pela melhor produtora (sempre um problema), a escolha do tesoureiro (pró-homens impolutos) a briga pela direção geral da campanha. Hoje, a um ano de eleição, essas questões estão longe de uma definição.
Além do fato de que não há candidatos. Como serão os acordos em Minas Gerais, colégio eleitoral de respeito? E São Paulo, quem vai com quem? O Rio sempre foi mais terra de ninguém mas e Bahia, colégio grande e difícil, onde o vai não vai envolve governador e prefeito?
Lula esteve em Brasília, ainda por cima, num ambiente político conturbado no Senado e na Câmara,que procuram saídas para os seus. Nenhuma contabilidade da política brasileira ao longo dos tempos aguenta enfrentar uma auditoria como a da Operação Lava-Jato. A falsidade ideológica é uma regra, dos usos e costumes. Falta muito para o dia clarear.
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