Eloísa Machado de Almeida / Folha de S. Paulo
Mutação constitucional. Assim foi classificada a mudança de interpretação que a maioria do Supremo Tribunal Federal fez para restringir a incidência do foro por prerrogativa de função.
Para a maior parte dos ministros, devem ser aplicadas duas ordens de restrições: uma temporal, delimitando que apenas os crimes praticados durante o exercício do mandado geram a fruição do foro no STF; e outra material, restringindo o foro apenas para crimes cometidos em razão do exercício do mandato.
Assim, eventuais crimes praticados antes da diplomação dos parlamentares devem ser investigados e julgados pelas instâncias ordinárias.
Da mesma forma, apenas crimes que tenham relação com a função exercida serão julgados pelo Supremo; os demais irão também para a primeira instância do Judiciário. Uma vez perdido o mandato, a ação sai do Supremo, exceto se já estiver em fase final, prestes a ser julgada.
O julgamento, mesmo com maioria formada, foi suspenso por pedido de vista de Dias Toffoli, deixando em aberto muitas dúvidas. Os juízes de primeira instância poderão determinar diligências que envolvam, por exemplo, buscas nos gabinetes de parlamentares? Deverão enviar eventuais ordens de prisão diretamente às casas legislativas? Poderão determinar a condução coercitiva de deputados para prestar depoimentos?
Ao que tudo indica, esses casos demandarão uma intervenção do Supremo em algum momento.
A maior dúvida, entretanto, está em saber a partir de qual instante essa interpretação valerá e como serão afetados os inquéritos e as ações penais que estão em andamento no STF, dentre os quais os da Operação Lava Jato.
Mudanças processuais como esta costumam ter aplicabilidade imediata, tal como decidira o próprio Supremo, por exemplo, ao analisar a necessidade de licença prévia para processar deputados e senadores.
Se isso se repetir, as ações penais e inquéritos da Operação Lava Jato —a maior parte relativa a atos anteriores à diplomação dos parlamentares— devem ser enviadas para a primeira instância.
Esse efeito imediato consta como sugestão no voto do relator, Luís Roberto Barroso. Além dessas questões, há uma enorme incerteza sobre a eficácia dessa mudança na redução da impunidade.
Grande parte dessas dúvidas se dá em razão da arena onde se dá o debate: o Supremo tem pouca flexibilidade —com razão— para realizar grandes mudanças nas regras do foro por prerrogativa de função, ainda mais no âmbito de uma questão de ordem suscitada numa ação penal em um caso concreto. Ou seja, Supremo não foi provocado para decidir sobre esse assunto, simplesmente tomou a dianteira.
Por enquanto, a decisão afeta apenas esse caso, mas poderá ser ampliada para todas as autoridades com foro no Supremo.
Isso é especialmente problemático quando Senado e Câmara avançam com uma proposta de emenda constitucional que procura reformar a Constituição para mudar as regras sobre o foro, mantendo-o apenas para Presidente da República, da Câmara, do Senado e do STF, na hipótese de crimes comuns.
A suspensão do julgamento dá tempo para que o Congresso faça mudanças até mais drásticas em relação ao foro por prerrogativa de função. A certeza é que, na sua omissão, o Supremo avançará.
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Eloísa Machado de Almeida é professora e coordenadora do Supremo em Pauta FGV Direito SP
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