- O Estado de S.Paulo
Os fundamentos éticos do regime democrático impõem restrições quanto a fins e meios
A eleição presidencial deste ano só não provocará um retrocesso econômico e político se até o início do ano os cães morderem menos do que têm ladrado. O termo cães é aqui uma metáfora inofensiva que compreende os principais candidatos e seus seguidores, principalmente os que entulharam as redes sociais com insultos e xingamentos durante esta lamentável campanha.
Os decibéis de setembro foram um reflexo fiel da crise que temos vivido, da raiva indiscriminada contra os políticos e partidos e, naturalmente, do matiz autoritário das duas principais candidaturas em confronto. Mas tento ser otimista, adotar a atitude oposta equivale a dar como inevitável o prolongamento do desastre iniciado no governo da sra. Dilma Rousseff.
Penso que o comedimento pode ser reencontrado por diversos caminhos, desde logo pela introspecção pessoal e por uma reflexão mais densa sobre a política. O governo, seja qual for, precisará de apoio no Congresso e os congressistas precisarão de acesso ao governo.
Parlamentos, como bem sabemos, firmaram-se ao longo do tempo como uma força civilizatória.
Uma tendência evolutiva no sentido da moderação pode também ser observada em outros campos de atividade – até no esporte. No futebol, por exemplo, de 20 ou 30 anos para cá, certas “entradas” que antes não eram consideradas faltosas no sentido estrito do termo passaram a ser punidas por envolverem “força desproporcional”. Passou-se a entender que o atleta infrator tentou realizar algo que poderia ter sido realizado por outros meios, ou que ele nem deveria ter tentado, pois não o poderia realizar sem pôr em risco a integridade física do adversário. Por singelo que pareça, esse exemplo indica o interesse comum num convívio mais respeitoso e fraterno, sem embargo do caráter competitivo da atividade.
De fato, os principais pensadores políticos do século 20 ressaltaram a moderação como um traço constitutivo da política, com a condição, é claro, de que por política entendamos uma atividade balizada por instituições, e não a mera brutalidade pretoriana. Max Weber ressaltou o “sentimento de proporção”, Michael Oakeshott caracterizou-a como uma atividade com fins limitados, Hannah Arendt destrinchou a malignidade inerente a todo totalitarismo.
O conceito weberiano de “proporção” e o oakeshottiano de “fins limitados” têm em comum uma recomendação de cautela, de bem ponderar meios e fins, uma vez que, em última análise, toda política digna do nome colima o bem da sociedade pelo ajustamento sempre precário de interesses conflitantes, de fins que colidem.
O bem da sociedade brasileira no próximo quatriênio presidencial passa inevitavelmente pelo ajuste fiscal e pela restauração da confiança dos agentes econômicos em nosso país e em nosso governo; não entender isso, falhar nessa missão, ou pô-la a perder por incapacidade de morder menos implicará um longo período de empobrecimento, conflito crescente e miséria.
A visão da política que venho de alinhavar é em parte fundada em juízos de valor, mas em parte também em juízos factuais, ou seja, em processos constitutivos da vida social de escolhas que se impõem inexoravelmente a todo governante. Como juízo de valor, estamos falando de uma esfera pública regida por uma aspiração de paz e civilidade.
Ver a política como uma atividade limitada, ou que se autolimita, sob pena de deixar de ser tal, num mundo angustiado por grandes urgências e temores? Num mundo que anseia por erradicar a pobreza e a corrupção, por uma proteção mais efetiva do meio ambiente, pela redução da insegurança e do potencial de conflito derivados de antagonismos geopolíticos? Realmente, a “autolimitação” não é uma ideia simples, não por acaso as ideologias passam ao largo dela.
Reiteremos, pois, que Weber e Oakeshott não afirmam apenas que a política deve ser limitada, eles dizem que ela é limitada por uma enorme variedade de fatores factuais.
Ignorar tais fatores leva inevitavelmente aos desnorteios populistas que tanto têm infelicitado a América Latina e a outras formas estúpidas de destruir capital humano e material, que inutilmente enrijecem malquerenças e debilitam nossos Estados e nações. Sim, grandes demonstrações de “vontade política” ocasionalmente dão certo.
De Gaulle encerrou a guerra na Argélia e normalizou a vida política da França na virada dos anos 50 para os 60. Na Alemanha, no segundo pós-guerra, os partidos Democrata-Cristão e Social-Democrata chegaram a um acordo histórico para erigir um sistema político admirável sobre os escombros do nazi-fascismo. Mas para cada experimento bem-sucedido é possível encontrar dezenas malsucedidos, impasses e mesmo desastres decorrentes de alguma inação invencível. Caberá aqui uma referência à inacreditável decadência da Argentina durante todo o transcurso do século 20?
Reiteremos, pois, que Weber e Oakeshott não afirmam apenas que a política deve ser limitada, eles dizem que ela é limitada por uma enorme variedade de fatores factuais. Toda ação política é limitada ou restringida pela resistência “natural” da sociedade, expressão que compreende, desde logo, a existência do “outro”, da oposição, dos que discordam de nós. Sem esquecer que o poder não é um jogo de soma zero: a limitação é uma forma de aumentar o poder agregado da sociedade.
O fato de que nenhuma decisão consegue alterar uma proporção muito grande do status quo social; o fato de que os recursos mobilizáveis são sempre uma pequena parcela do necessário para produzir mudanças em larga escala; a China reinveste anualmente cerca de 40% de seu PIB, mas ainda abriga centenas de milhões de miseráveis. Por último, chovendo no molhado, sabemos todos que os fundamentos éticos do regime democrático impõem restrições quanto a fins e meios.
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*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências; é diretor do 'Ciclo de Estudos de Política, Economia e História'
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