A imprensa anuncia que o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso encabeça, a quatro dias do primeiro turno das eleições, um manifesto reiterando apoio à candidatura de Geraldo Alckmin. Um olhar apressado sobre esse gesto poderá julgá-lo tardio, inócuo, ou algo assim, porque a parada travada, nesse primeiro turno, no campo do antipetismo, já parece ter sido vencida por Jair Bolsonaro. O ex-governador de São Paulo não mostra mais chance de chegar ao segundo turno. Uma parte do que estamos assistindo nos últimos dias (e que alguns já chamam de “onda Bolsonaro”) é resultado da percepção de eleitores e eleitoras antipetistas ainda indecisos de que “precisam” correr o risco de seguir o capitão para tentar evitar o que consideram ser o risco maior: o retorno do PT ao governo.
Tudo isso é real mas não quer dizer que o manifesto de FHC é inócuo. Muito pelo contrário, esse manifesto e as ações eleitorais que podem se associar a ele (inclusive no amplo horário eleitoral do candidato tucano) podem evitar que ocorra com Alckmin, nesses últimos dias da campanha, o que ocorreu com Marina a partir do momento em que o PT oficializou a candidatura de Haddad. Se metade ou um pouco mais dos 8, 9 ou 10% de eleitores que, segundo as pesquisas de intenção de voto, ainda pretendem votar no tucano, rumarem em direção a Bolsonaro, esse último pode conseguir o que lhe falta para alcançar o que há alguns dias parecia (inclusive a mim) um delírio: vencer as eleições no primeiro turno. Ajudar a evitar isso talvez seja a essa altura a contribuição positiva possível do PSDB nesse processo depois dos equívocos em série que o partido cometeu. FHC e os que o acompanham nessa declaração política parecem estar lendo com lucidez a gravidade do momento. Tomara que seus liderados o ouçam.
Porém, a luta mais decisiva a ser resolvida até domingo é no outro campo. Será travada em torno de quem será o adversário de Bolsonaro no segundo turno. Nove entre dez analistas acreditam que essa parada também já está decidida e que essa pessoa será Fernando Haddad, o candidato do PT. Reconheço o realismo dessas análises pois elas se baseiam também no que pesquisas do Ibope e Datafolha estão dizendo. Mas antes de dar o assunto por encerrado convém apurar a vista e ver o que as pesquisas desses dois institutos passaram a sugerir após o último fim de semana: “nova onda” Bolsonaro, que o fez voltar a crescer depois de semanas de estabilização e um aumento exponencial da rejeição a Haddad, além da interrupção do crescimento de intenções de voto dirigidas a ele. Agora o capitão está cerca de dez pontos à frente do petista e as rejeições a ambos encontram-se em empate técnico.
É razoável pensar que o novo alento nas intenções de voto em Bolsonaro resulta só da sua disputa com Alckmin pelos votos do campo “azul”? Os números estáveis nas intenções de voto e na rejeição do tucano mostram que não. Mais sensato pensar que o capitão ganhou novo fôlego com ajuda de movimentos ocorridos no campo “vermelho”. Refiro-me ao crescimento rápido de Haddad com um discurso que promete retorno aos tempos de Lula. Refiro-me também ao conteúdo das mensagens do movimento “elle não”. Como porta-voz de Lula se expôs sem autocrítica e ainda por cima veiculando a obscura proposta da “Constituinte exclusiva”, sacada por Dilma Rousseff, em 2013, para não enfrentar o que então se cobrava nas ruas, do governo e dos políticos. Esse coquetel retrô atiçou o pânico antipetista. Quanto ao movimento antiBolsonaro concentrou-se em pautas identitárias e não na crítica à aversão do capitão à democracia e ao pluralismo político. A opção foi apostar na polarização e não num conteúdo cívico que buscasse consensos democráticos contra o autoritarismo. Não se trata de desqualificar as pautas identitárias, que merecem simpatia e apoio dos democratas. Mas manifestações afirmativas em torno de temas ligados a costumes atiçaram o pânico do conservadorismo que notoriamente cresceu na sociedade brasileira de 2014 para cá. E isso num momento eleitoral em que o PT crescia. Então, antipetismo político e/ou conservadorismo comportamental parecem ser os fermentos da nova onda que está fazendo mais e mais indecisos decidirem-se por Bolsonaro.
Eleitoras e eleitores antibolsonaristas (simpatizantes ou não do PT) têm até domingo para decidirem qual cenário de segundo turno favorece o objetivo de derrotar o capitão. Podem continuar seguindo o script da campanha de Haddad, de unir o que ele chama de campo “democrático e popular” contra quem não for as duas coisas ao mesmo tempo. Devem preparar-se para uma guerra de fim de mundo no segundo turno, apostando na militância atuante e no mito Lula para fazerem prevalecer as “verdadeiras” justiça e democracia. Espero que todos estejamos atentos a dois fatos: o primeiro é que dessa vez o campo oposto a esse também possui militância, mito e a “sua” verdade. O segundo é que mesmo que a esquerda possa vencer a eleição, o governo terá que ser compartilhado com quem não é do “campo popular” e à frente desse governo não estará o mito e sim alguém que tateia em usar o mito como biombo e máscara. Quem quiser tem direito de apostar, mas não de alegar depois que não sabia dos riscos.
O caminho alternativo é apostar na reunião de diversos tipos de democratas para enfrentar o discurso obscurantista com que Bolsonaro e seu mal ajambrado grupo se dirige ao país. Para começo de conversa esse caminho implicará em compromisso inabalável com a Constituição, que os dois candidatos até aqui mais bem situados nas pesquisas querem ou sugerem revogar. Em segundo lugar – mas não menos importante – esse caminho significa não tratar os eleitores de Bolsonaro no primeiro turno como se fosse um exército de inimigos. Compreender que a grande maioria de muitos milhões de eleitores que estão hoje fazendo essa opção, fazem-na não porque são fascistas, homofóbicos, racistas ou coisa que o valha e sim porque estão assustados com o que consideram ser o “mal maior”. Portanto, são eleitores que precisam e podem ser reconquistados por uma campanha democrática, para que possam voltar a apostar na democracia que temos. Não se pode sequer estigmatizá-los, de modo arrogante e simplório, como “coxinhas”. Não se derrota intolerância senão com respeito genuíno a todas as diferenças, sem exceção.
Minha percepção – e modestamente, realisticamente, ponho-a assim, como apenas uma percepção – é que uma campanha de segundo turno liderada por um candidato do PT não poderá produzir esse desarmamento moral, tão necessário para que tenhamos paz. Por outro lado, a candidatura de Ciro Gomes ainda pode acenar a quem não se alinhou para uma guerra. Pensar nessa opção não é ir contra Haddad - nem contra o prefeito de ontem nem contra o candidato que hoje, constrangidamente, contradiz o perfil daquele. Também não é porque se possa ter em Ciro alguém mais talhado a nos “salvar”. São muitas as incertezas que essa opção encerra. Mas, a meu ver, menores. Logo, é uma perspectiva. É interessante pensar o seguinte: esse candidato, que está longe de ser um candidato à unanimidade, é o único que conserva, em meio à tempestade, a possibilidade de falar, ao mesmo tempo, a quem teme Bolsonaro e a quem teme o PT. Aos primeiros pode dizer que é opção mais segura do que Haddad pra enfrentar o capitão; aos segundos pode se apresentar como a possibilidade de tirar o PT do segundo turno.
Pela situação objetiva que a disputa eleitoral coloca, a possibilidade de termos um segundo turno em que não se precise fazer a opção desesperada entre um cálice de vinho tinto de sangue e um pote até aqui de mágoa não é algo que se possa apresentar como provável. Mas - data vênia aos já alinhados, a quem também não nego por isso a condição de democratas - é o que os não alinhados têm a fazer até o dia 7. Depois do dia 7, caso o quadro insinuado hoje se mantenha, é aceitar o cardápio hard, que terá sido a vontade do soberano.
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Paulo Fábio Dantas Neto é professor da UFBA
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