- Valor Econômico
Ideologia e grupos de interesses podem esvaziar reforma
Doug Stamper é o principal assessor de Frank Underwood, o político americano da série "House of Cards". Extremamente meticuloso, Stamper possui um banco de dados com os mínimos detalhes da vida parlamentar e até mesmo pessoal de todos os membros do Congresso americano. Nas suas planilhas estão os financiadores de campanha, os posicionamentos em cada votação e qual é o eleitorado principal de cada legislador. Essas estatísticas municiam toda a estratégia de Frank Underwood no xadrez político rumo ao poder.
De vez em quando é bom brincar de Doug Stamper, principalmente diante de uma proposta complexa como a reforma da Previdência apresentada pelo governo Bolsonaro. Esse exercício é fundamental para especularmos sobre o seu desfecho e, principalmente, seus resultados fiscais.
Como são 513 deputados e a Constituição exige um mínimo de 3/5 para aprovação, o desafio do governo é obter 308 votos. Logo, a oposição trabalha com um mínimo de 206 votos para derrotar a reforma. Analisando somente a composição dos partidos na Câmara, a margem do governo é aparentemente confortável. Tomando os partidos que tradicionalmente se opõem à proposta (PT, Psol, PCdoB, PV e Rede), são apenas 78 votos. Mesmo se incluirmos aí boa parte dos 60 deputados do PDT e do PSB - que não são radicalmente contra alterações nas regras previdenciárias, mas têm críticas às soluções apresentadas pelo governo - parece difícil para a oposição impor esse fracasso a Bolsonaro.
No entanto, a reforma da Previdência não é um jogo simplista de "sim" ou "não" sobre um pacote fechado. Como os parlamentares podem destacar pontos específicos para serem votados em separado, cada medida apresentada pelo governo (como os aumentos das idades mínimas e do tempo de contribuição, alíquotas progressivas da contribuição dos servidores públicos, endurecimento das regras para professores, policiais e trabalhadores rurais, e mudanças nos benefícios assistenciais) será submetida a uma batalha particular de dois turnos em busca dos números mágicos de 308 para o governo e 206 para quem se opõe às alterações.
E é aí que mora o perigo. Uniões eventuais entre membros da oposição ideologicamente contrários à reforma e parlamentares do centro ou até mesmo da base governista que cederem à pressão dos grupos de interesses podem levar a derrotas pontuais do governo. Nesse contexto, o que parece improvável no atacado (a não aprovação da reforma) pode ser bastante factível no varejo, esvaziando seu impacto fiscal.
Tomemos o caso da elevação da idade mínima para aposentadoria das mulheres, de 60 para 62 anos. Somando os prováveis votos contrários da oposição (138) e das outras 37 deputadas que estão no centro e na base do governo, bastariam mais 31 votos, num total de 338 parlamentares restantes, para derrubar a proposta do governo. Ou seja, a margem é bastante apertada.
Se analisarmos o passado dos parlamentares, a situação fica ainda mais nebulosa para o governo. Entre os deputados do centro e da base bolsonarista, um contingente significativo pertence a bancadas de apoio a categorias diretamente afetadas pela reforma. É o caso por exemplo da bancada em defesa da educação (que teve 74 deputados reeleitos), das frentes parlamentares de apoio a policiais militares, civis e federais (que contam em média com 65 deputados) e de carreiras da elite do funcionalismo público, como fiscais da Receita, advogados da União, defensores públicos e magistrados (cada uma com uma média de 70 deputados reeleitos). Além disso, diversas categorias estão diretamente representadas na Câmara: na atual legislatura existem 30 professores, 26 servidores públicos e 34 deputados ligados às policias militares, civis e Forças Armadas.
Levando em consideração esses vínculos históricos com as respectivas categorias, é de se esperar uma grande pressão sobre esses parlamentares. Se boa parte deles se posicionar junto com a oposição, além dos eventuais apoios angariados junto a deputados novatos, o governo vai ter muita dificuldade de garantir os 308 votos necessários para evitar que sua proposta seja completamente desfigurada.
Analisando as manifestações dos atuais parlamentares nas redes sociais, percebemos que a proposta ainda não vem sendo discutida fora dos gabinetes. Com exceção de apoios incontestes vindos de deputados do PSL e do coro de "contra a reforma da Previdência" da oposição, em geral os políticos de centro ainda não se manifestaram questões específicas. Isso significa que, se o governo trabalhar bem politicamente, pode diminuir os riscos de derrotas pontuais que tenham um grande custo orçamentário.
Além dos argumentos técnicos e do convencimento político, a gravidade da situação fiscal também pode ajudar alguns parlamentares a, mesmo diante de seu posicionamento histórico, colocarem-se a favor de uma reforma da Previdência mais abrangente. O exemplo mais claro é do próprio Jair Bolsonaro. Até o ano passado, o atual presidente não só era membro da frente parlamentar contra a reforma da Previdência, como também fazia parte das bancadas que defendiam interesses de carreiras que tentam preservar seus privilégios na atual negociação, como militares, policiais federais, juízes e fiscais da Receita. O mesmo vale para o principal articulador político civil do governo, Onyx Lorenzoni.
Se foi difícil para Paulo Guedes converter Bolsonaro e Onyx, que serão diretamente responsabilizados politicamente caso o país quebre, fazer com que o parlamentar médio, muitos deles do baixo clero, resista aos grupos de pressão é tarefa digna de Frank Underwood. A reforma da Previdência será o batismo de sangue do governo.
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