- Folha de S. Paulo
A diplomacia brasileira respeitará a Constituição ou se submeterá a concepções toscas?
A Constituição de 1988 determina que o Brasil deve reger-se em suas relações internacionais por um conjunto de princípios, entre os quais o da “prevalência dos direitos humanos”. Isso significa que a liberdade do governo —qualquer que seja ele— na condução da política externa encontra limites e parâmetros claros no texto constitucional, que não podem ser violados ou negligenciados. No caso dos direitos humanos, a determinação é que lhes seja dada “prevalência”. Esse reforço normativo, não dispensado aos outros princípios, indica, no mínimo, que a defesa dos interesses nacionais jamais pode se dar em detrimento dos direitos humanos.
Com a abertura da 45º sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, na próxima segunda-feira (14), a diplomacia brasileira estará mais uma vez submetida a um teste de fidelidade: respeita a Constituição ou se submete a concepções toscas, retrogradas e conspiratórias abraçadas pelo chanceler e outros radicais, contribuindo para lançar o país à condição de verdadeiro pária internacional. Isso com graves consequência para nossa economia e para a própria capacidade de assegurar os legítimos interesses nacionais na esfera internacional.
Os direitos humanos no campo socioambiental constituem o tema central dessa sessão. Serão apresentados relatórios sobre o impacto de resíduos tóxicos sobre a saúde das pessoas e o meio ambiente. A flexibilização das regras para o uso de agrotóxicos e para a mineração, além da lentidão na reparação integral de populações afetadas por desastres provocados pela ação humana, serão certamente apontados como deficiências do Estado brasileiro no cumprimento de suas obrigações.
Também será cobrado da representação brasileira explicações sobre a mudança na política de proteção aos povos indígenas. É bom lembrar que pende na procuradoria do Tribunal Penal Internacional solicitação de abertura de investigação sobre eventual prática de crime contra a humanidade pelo presidente, relacionada ao risco de extinção de determinados povos indígenas.
A própria Alta Comissária de Direitos Humanos, Michelle Bachelet, atualizará seu informe sobre ameaças aos direitos humanos durante a pandemia de Covid-19. Mais uma vez Bolsonaro deverá ser apontado entre aqueles líderes que negaram as graves ameaças colocadas pelo vírus, com consequências trágicas a milhares de vidas humanas.
Por fim, deverão ser discutidos temas como racismo e violência policial, maior controle sobre armas de fogo e o impacto do Covid-19 sobre populações indígenas, que colidem com a visão regressiva de setores governamentais. O Brasil, ironicamente, faz parte de um grupo composto por Áustria e França, entre outros, que apresentará uma resolução sobre ameaças a profissionais da imprensa. Quem sabe isso contribua para inibir a hostilidade do presidente a jornalistas, especialmente mulheres, além de nos tirar da constrangedora posição de um dos países onde mais morrem jornalistas.
Muitos são os motivos de preocupação, como apontam diversos relatórios da Conectas Direitos Humanos. Na última sessão do conselho, a missão brasileira desempenhou um papel constrangedor ao apresentar inúmeras objeções a resoluções relacionadas aos direitos de gênero, alinhando-se a países que negam às mulheres o direito fundamental à igualdade e à dignidade.
Embora o controle sobre a política externa praticada pelo presidente e seus auxiliares seja responsabilidade primária do Congresso Nacional, nada impede a intervenção do judiciário para sustar graves afrontas à Constituição. Afinal, ninguém está acima da lei.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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