A
imunidade do presidente da República é muito ampla, mas não é total. Tudo o que
se faz no cargo é plenamente passível de responsabilização
Ao tratar das responsabilidades do chefe do Executivo, a Constituição dispõe: “O presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções” (art. 86, § 4.º). Excepcionalíssima, essa imunidade é atribuída exclusivamente ao presidente da República. Seu objetivo é assegurar condições para o exercício do cargo, impedindo a responsabilização de qualquer ato, por mais grave que seja, não relacionado às funções presidenciais.
A
Constituição fez, assim, clara opção. Considera que é preferível atrasar a
investigação de eventuais atos ilegais do presidente da República que não
estejam relacionados à sua função presidencial do que submeter o ocupante do
Palácio do Planalto a pressões judiciais que poderiam trazer graves prejuízos
ao País. Mais do que preservar a pessoa do presidente da República, essa
imunidade constitucional vem proteger o exercício da função presidencial. Seu
objetivo é assegurar que o chefe do Executivo federal possa, de fato e de
direito, exercer o poder que lhe foi conferido pelo voto popular.
Muitas vezes, essa imunidade foi criticada, como se fosse instrumento de impunidade. A autoridade que, de certa forma, concentra mais poder no País teria um regime privilegiado. Concorde-se ou não com a crítica, é preciso reconhecer que a imunidade do presidente da República é de fato muito ampla. Ele não pode ser responsabilizado por nenhum ato estranho ao exercício de suas funções.
Esse
quadro de ampla e excepcionalíssima imunidade pode, de fato, conduzir a uma
equivocada impressão: a de que o presidente da República seria, na vigência do
mandato, irresponsável por seus atos. Trata-se de não pequeno engano. A
despeito da imunidade constitucional relativa a todos os atos estranhos ao
exercício de suas funções, o presidente da República – precisamente por ter um
cargo com amplos poderes, envolvendo áreas muito amplas – tem uma imensa
responsabilidade, também jurídica, sobre seus ombros.
Ao
contrário do que possa parecer, não é nada difícil que o chefe do Executivo
pratique, no exercício do mandato, uma atividade ilegal. Levando o raciocínio
ao extremo, para que haja um ato ilícito não é necessário que o presidente da
República integre uma organização criminosa ou utilize o cargo para desviar
recursos públicos para contas bancárias de familiares. Em 2016, por exemplo, o
País acompanhou o julgamento das ilegais pedaladas fiscais da presidente Dilma
Rousseff.
Mas
não são apenas atos de natureza fiscal que podem trazer problemas jurídicos ao
ocupante do Palácio do Planalto. A título de exemplo, basta que um presidente
da República não respeite zelosamente os limites e finalidades dos órgãos
públicos que servem ao Executivo federal para que seus atos facilmente tangenciem
os campos da ilegalidade. A lei tem parâmetros precisos. Por exemplo, a
presença do diretor-presidente da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e
do chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) em reunião para tratar da
defesa jurídica de um filho do presidente da República é claro indício de uso
indevido do aparato público em benefício particular, o que constitui crime de
responsabilidade. O que dizer se a agência ainda produz relatórios informais
para os advogados do primogênito?
Além
disso, há muitas luzes sobre o exercício da Presidência da República.
Dificilmente um ato presidencial fora dos limites legais não é notado, por
exemplo, pela Procuradoria-Geral da República.
A
imunidade do presidente da República é muito ampla, mas não é total. Tudo o que
se faz no cargo é plenamente passível de responsabilização. Nesse sentido, as
disposições constitucionais não são uma autorização para que se faça o que
quiser no cargo e com o cargo – ainda que algum incauto possa assim pensar. Na
verdade, toda a Constituição está orientada precisamente para o exercício
responsável do poder. Por isso, comete grave engano, com sérias consequências
jurídicas, quem acha que a imunidade do art. 86 é um alvará para fazer o que
bem entender na Presidência da República.
Travessia no nevoeiro – Opinião | O Estado de S. Paulo
Governo
se mostra incapaz de liderar a passagem para o cenário do novo ano
Escuridão e névoa cobrem a paisagem de 2021, a poucos dias da passagem de ano, mantendo a incerteza e também o risco das decisões econômicas. No meio da insegurança, as indefinições do governo e os avanços da turma da gastança aumentam o temor de maior desarranjo nas contas públicas e na economia. Novos sinais de perigo apareceram com a aprovação, com seis meses de atraso, da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), convertida em ameaça à responsabilidade fiscal. As oscilações no mercado de capitais, de um dia para outro e também ao longo de cada dia, refletem as inquietações e desconfianças dos investidores. Até o Banco Central (BC), apesar da competência de seu corpo técnico e de sua proximidade com o Executivo, se revela anormalmente inseguro ao anunciar suas projeções para o próximo ano.
Crescimento
econômico de 3,8% em 2021 é uma dessas projeções. Os cenários prospectivos
foram apresentados na última edição de 2020 do Relatório de Inflação. Esse
documento, publicado a cada três meses, contém um panorama econômico nacional e
internacional, acompanhado de projeções. O crescimento estimado para o próximo
ano é ligeiramente menor que o indicado na edição anterior (3,9%). A base de
comparação, 2020, ficou um pouco mais alta. Pelos novos cálculos, o Produto
Interno Bruto (PIB) deste ano deve ser 4,4% menor que o de 2019. A previsão
anterior indicava perda de 5%. Essa elevação do patamar explica em boa parte a
ligeira mudança da expectativa em relação aos próximos 12 meses.
Mas
toda projeção é hoje muito insegura, segundo os técnicos e diretores do BC. O
relatório volta a mencionar uma “incerteza acima da usual”, já apontada em
notas do Comitê de Política Monetária (Copom), órgão de cúpula da instituição.
A previsão de crescimento do PIB em 2021 é “novamente condicionada ao
arrefecimento gradual da crise sanitária, à manutenção do regime fiscal e ao
cenário de continuidade das reformas e ajustes necessários”.
Essas
condições foram indicadas, em outras manifestações do Copom, como necessárias à
manutenção dos juros básicos em 2% ao ano. Além de aliviar os custos de um
Tesouro superendividado, essa taxa proporciona algum espaço para a sustentação
dos negócios. A insegurança quanto à política fiscal poderá impossibilitar
esses juros. Se o BC tiver de aumentá-los, a mudança poderá impedir o
crescimento estimado para 2021, já insuficiente para o País voltar ao nível de
2019.
No
mercado, a desconfiança em relação à política fiscal tem sido realimentada
seguidamente por Brasília e, de modo geral, pelas atitudes do presidente Jair
Bolsonaro. A LDO recém-aprovada surgiu como mais um fator de insegurança. Os
parlamentares blindaram 59 programas contra qualquer bloqueio e incluíram o
programa Casa Verde e Amarela como prioridade. Tentaram limitar severamente a
gestão das contas públicas, aumentando o risco de estouro do teto de gastos.
As
piores mudanças introduzidas no texto ficaram evidentemente sujeitas a veto
presidencial, mas, de toda forma, as contas públicas foram expostas a um
conjunto maior de riscos. Além disso, vetos desse tipo dependem do sucesso do
ministro da Economia, Paulo Guedes, no esforço de convencer o presidente Jair
Bolsonaro. Mas esse convencimento nunca é definitivo.
Declarações
em defesa do teto de gastos têm sido repetidas, mas sem desanimar os ministros
e parlamentares favoráveis à gastança. O presidente nunca fez o suficiente para
convencê-los de seu compromisso com a boa gestão das finanças. Nem mesmo está
claro, até hoje, se ele tem uma clara percepção do assunto.
Uma
noção básica da importância da gestão orçamentária é essencial para a compreensão
das funções presidenciais. Uma dessas funções é apontar ao público, por meio de
comunicação sensata e eficiente e também do exemplo, as ações a favor do
interesse público. Muitos chefes de governo cumpriram esse papel em 2020, no
meio de uma pandemia devastadora, e agora tentam mobilizar o povo para a
vacinação. Além disso, vejam só, eles também cuidam de finanças públicas.
Secretário
da Agricultura de São Paulo refutou todas as bobagens ditas sobre a Ceagesp
Um dia depois da enxurrada de bobagens que o presidente Jair Bolsonaro pronunciou sobre o futuro da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), descartando a possibilidade de sua privatização, classificando-a como um “ninho de ratos” e afirmando que a empresa “continuará onde está”, o secretário de Agricultura do Estado de São Paulo, Gustavo Diniz Junqueira, refutou todas essas críticas com objetividade, prudência e argumentos técnicos.
Em
entrevista ao jornal Valor, Junqueira afirmou que, além do complexo
situado na Vila Leopoldina, próximo ao Rio Pinheiros, na região oeste da
capital, a Ceagesp administra outras 12 centrais de abastecimento e
comercialização de produtos de hortifruticultura no interior. E, como nos
últimos quatro anos a empresa só acumulou prejuízos, por causa de passivos
trabalhistas e ambientais, esse modelo de negócio vem sendo repensado desde
então, disse Junqueira. Além disso, como a União é a principal acionista da
Ceagesp, caberá a ela, e não ao governo do Estado de São Paulo, decidir se a
empresa será vendida ou, então, fechada. “A não ser que o governo federal tire
dinheiro do Tesouro Nacional para colocar na empresa, ela não tem como se
sustentar”, afirmou o secretário.
Dias
Junqueira também lembrou que a privatização da Ceagesp consta do Plano de
Desestatização do Governo Federal, assinado pelo próprio presidente Jair
Bolsonaro em outubro do ano passado. Informou, ainda, que o Ministério da
Economia contratou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) para fazer uma avaliação da empresa e propor um destino para todos os
seus ativos, inclusive os entrepostos situados no interior paulista. Por fim,
afirmou que, em 2019, no primeiro ano de mandato de Bolsonaro, a Secretaria
Especial de Desestatização do governo federal assinou um acordo com o governo
do Estado de São Paulo, prevendo a transferência do entreposto da capital para
um terreno próximo do Rodoanel Mário Covas. Desse modo, com base em documentos,
pareceres e dados factuais, o secretário da Agricultura deixou claro que
Bolsonaro mentiu ou, então, não tem a menor ideia dos decretos que assina e dos
projetos de seu governo.
Junqueira
classificou como “leviana” a ideia de manter a unidade da Ceagesp na Vila
Leopoldina, defendida por Bolsonaro sem qualquer fundamento técnico. Nos
estudos elaborados pelo governo federal sobre o futuro da empresa e no acordo
firmado com o governo paulista, ficou evidenciado que a melhor estratégia para
a distribuição e abastecimento de frutas, verduras, legumes e flores na maior
cidade do País é a criação de unidades próximas dos consumidores, nas
diferentes regiões da capital. Elaborado em 2004 pelo Laboratório de
Planejamento e Operação de Transportes da Escola Politécnica da Universidade de
São Paulo (USP), um desses estudos mostra que a descentralização do
abastecimento seria decisiva para o desafogamento do tráfego de caminhões
pesados pela cidade. “O bairro de Vila Leopoldina não tem capacidade de
absorver o tráfego de veículos no entreposto, com o impacto ambiental e os
problemas de segurança que o movimento gera”, disse o secretário.
Mais
importante ainda, explicou Junqueira, é que a permanência do entreposto da
Ceagesp na Vila Leopoldina comprometerá um projeto vital para o futuro do País,
num período em que a economia mundial já opera com base na Revolução Industrial
4.0. Como o terreno da Ceagesp fica próximo das principais escolas da USP, a
ideia é instalar nele um polo tecnológico em parceria com grandes empresas.
Esse é o modelo que prevalece nos Estados Unidos, onde grandes conglomerados
mantêm sedes ao lado de universidades de ponta, como Stanford, Berkeley, MIT e
Harvard.
O futuro sem o auxílio emergencial – Opinião | O Globo
Fim
abrupto lançará milhões na pobreza. Teria sido viável solução diferente —
Bolsonaro não quis saber
Em
poucos dias, 59 milhões de brasileiros deixarão de ter direito ao auxílio
emergencial criado para mitigar os efeitos da pandemia. Na prática, isso
significa que, dos 68 milhões que fizeram jus ao benefício ao longo do ano,
apenas os 19 milhões que ainda recebem o Bolsa Família continuarão a contar com
alguma ajuda do governo. O impacto nos indicadores de pobreza e desigualdade
deverá ser dramático.
Na
estimativa do economista Pedro Fernando Nery, o auxílio reduziu a pobreza em
24%. Cerca de 20 milhões de pessoas deixaram de cair abaixo da linha da
pobreza, e 10 milhões saíram dela em virtude dos R$ 600 recebidos por mês do
governo, reduzidos em setembro a R$ 300. O índice de Gini, que mede a
desigualdade, caiu pela primeira vez na História abaixo de 0,5. Em nove meses,
o auxílio destinou aos mais pobres recursos equivalentes ao distribuído em dez
anos pelo Bolsa Família.
O
benefício também contribuiu para reduzir o impacto da recessão no desemprego,
pois permitiu que muitos não precisassem procurar trabalho durante a
emergência. É esperado que, com o fim abrupto, os índices subam. Em estudo
sobre o Brasil lançado este mês, a Organização para a Cooperação e o
Desenvolvimento Econômico (OCDE) afirma que 9% da força de trabalho perderam o
emprego nos últimos 9 meses e ainda não foram capazes de voltar ao mercado.
Prevê que, em 2021, o desemprego chegará a 16%.
Para
a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina
Georgieva, o fim abrupto da ajuda aos pobres, ainda sob os efeitos da crise da
pandemia, representa um risco. O FMI estima que haverá 24 milhões de
brasileiros na pobreza extrema sem o benefício. A questão é como conciliar a
assistência aos necessitados e a responsabilidade fiscal.
Em
seu estudo, a OCDE conclama o governo a “acelerar a concessão de benefícios do
Bolsa Família”, com retirada gradual do auxílio em vigor. Para criar espaço
fiscal, recomenda rever a folha de pagamentos do funcionalismo, subsídios de
eficácia duvidosa, a rigidez orçamentária que engessa 95% do gasto público — e
manter o respeito ao teto de gastos, que volta a vigorar no Orçamento de 2021.
Em relatório recente, a Instituição Fiscal Independente, ligada ao Senado,
demonstrou várias saídas para ampliar o Bolsa Família respeitando o teto, por
meio da extinção de programas sabidamente ineficazes, como abono salarial,
seguro-defeso ou subsídio à cesta básica.
Não
há contradição entre uma política social bem feita e a disciplina fiscal. Ao
contrário: o erro é acreditar que os recursos são infinitos, suficientes para
tudo. Teria sido viável planejar a retirada gradual do auxílio, incorporando os
necessitados à base do Bolsa Família, extinguindo programas assistenciais
ineficazes e respeitando limites fiscais. Infelizmente, o presidente Jair
Bolsonaro — que manteve popularidade e conquistou apoio com o auxílio —nem quis
saber do assunto. Passou o ano em busca de um programa assistencial para chamar
de seu, mas foi incapaz de encaminhar uma solução política capaz de abrigá-lo
sob o teto de gastos.
Restaurar
o veto à desoneração elevará o desemprego já em alta – Opinião | O Globo
A
mera notícia de que Bolsonaro recorreria ao STF fez empresas pensarem em
começar a demitir
Ao
desdenhar a vacinação obrigatória, o presidente Jair Bolsonaro obrigou o
Supremo Tribunal Federal (STF) a se manifestar, garantindo a estados e
municípios a autonomia para impor sanções a quem não quiser se vacinar. Agora,
Bolsonaro quer levar outra batalha ao Supremo. Pretende que a Corte reveja a
derrubada, pelo Congresso, de seu veto à extensão, até o final de 2021, da
desoneração da folha salarial para 17 setores.
A
desoneração substitui a contribuição previdenciária de 20% da folha por
alíquotas entre 1,5% e 4% do faturamento. Permite que empresas mantenham postos
de trabalho, num momento em que o desemprego subiu para 14,6%, com tendência de
alta pelo agravamento da pandemia. São 14,1 milhões sem trabalho. É um
desatino, neste momento de crise aguda, insistir em não preservar a desoneração
para atividades que empregam 6 milhões.
A
prorrogação que o governo Bolsonaro quer revogar foi incluída em maio na MP
936, que abriu a possibilidade da manutenção de empregos mediante redução de
salários e proporcional diminuição da jornada de trabalho. A regra foi mantida
até o fim de 2021 para setores que empregam mão de obra intensivamente, como
construção civil, call-centers, transporte rodoviário de cargas e coletivo,
comunicação, produção de proteína animal e calçados.
O
desvario de insistir no veto fica claríssimo no argumento usado pelo governo
para recorrer. Na versão dos advogados do Planalto, os deputados e senadores
desconsideraram o impacto de R$ 10 bilhões da prorrogação nas contas públicas.
Ora, trata-se de um argumento indigente. Essa renúncia fiscal está na Lei de
Diretrizes Orçamentárias, base para a discussão sobre o Orçamento de 2021, já
aprovada por esses mesmos deputados e senadores.
Não
há dúvida de que é necessário cuidado para conceder incentivos numa conjuntura
de crise fiscal. O próprio Orçamento proposto para 2021 inclui um déficit
primário de quase R$ 250 bilhões. Mas a extensão por mais um ano da desoneração
parcial protege empregos e, por decorrência, preserva o poder aquisitivo de
milhões que fazem a economia girar.
Se
a ação for mesmo adiante no Supremo, não faltam razões para ser rejeitada. A
intenção do Planalto já produz efeitos negativos no mercado de trabalho. O
simples anúncio do recurso ao STF criou insegurança jurídica em milhares de
empresas, que suspenderão planos para 2021 e começarão já a fazer demissões. Se
o Planalto insistir no recurso, caberá aos ministros do STF impedir a restauração
do veto. Quanto ao governo Bolsonaro, é como se dizia no primeiro ano do
mandato: com tanta capacidade de criar problemas para si mesmo, nem precisa de
oposição.
E os R$ 89 mil? – Opinião | Folha de S. Paulo
Bolsonaro
dissimula ao tratar do caso Queiroz, a ser elucidado com urgência
Fluidez
lógica e domínio da expressão na língua portuguesa não são atributos associados
a Jair Bolsonaro, mas deve-se creditar alguma esperteza ao presidente. Não raro
ele utiliza suas incapacidades como forma de moldar os fatos aos contornos
narrativos que melhor servem a seus interesses.
Tal
sagacidade foi demonstrada na semana passada, quando Bolsonaro
enfim resolveu falar sobre uma questão que perpassou o ano: por
que sua mulher, Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz.
Em
agosto, um repórter que enunciou a pergunta foi ameaçado pelo mandatário, que
disse ter vontade de “encher sua boca de porrada”. Ficou por isso.
Na
terça-feira passada (15), no ambiente controlado e amigável do programa de José
Luiz Datena na Band, Bolsonaro afirmou candidamente que o dinheiro era para
ele. “O Queiroz pagava conta minha também”, acrescentou.
O
chefe de Estado adensa o nevoeiro em torno do caso. Queiroz é um ex-policial
amigo de sua família e foi homem forte do gabinete de deputado estadual do hoje
senador Flávio (Republicanos-RJ), primogênito do clã.
Nessa
condição empregou parentes de milicianos e, segundo investigações em curso,
comandou o esquema das “rachadinhas”, algo que indícios levam a crer ter
ocorrido também no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro.
Desde
que foi revelado que Queiroz e sua mulher depositaram recursos na conta de
Michelle, de 2011 a 2016, a ligação ficou no ar.
“Aqueles
cheques do Queiroz, ao longo de dez anos, foram para mim. (...) Divide aí,
Datena, R$ 89 mil por dez anos. Dá em torno de R$ 750 por mês. Isso é
propina?”, questionou o presidente.
Além
de dobrar o prazo dos pagamentos, Bolsonaro convenientemente esquece que dizia
ter apenas emprestado R$ 40 mil a Queiroz, sendo os recebimentos amortizações
nunca declaradas ao fisco.
Ademais,
ninguém o acusou de receber propina. A dúvida é se os valores eram oriundos de
“rachadinhas”, algo também ilegal e imoral.
O
mandatário confunde e desvia o foco do principal nessa apuração. A suspeita de
uso de estrutura oficial de investigação sigilosa do Planalto em favor de
Flávio, na figura da Agência Brasileira de Inteligência, mostra que é urgente
insistir na elucidação do caso.
A
prisão de Queiroz, “um injustiçado” segundo Bolsonaro, teve o condão de esfriar
a crise que se tornava institucional em junho.
Foram
pausadas as manifestações golpistas explícitas e o choque entre Poderes; entrou
em campo o centrão, com as faturas conhecidas.
Alternando
dissimulação e ligeireza, o presidente só busca proteger seus filhos, a si e a
seu mandato.
Brasil
combina ampliação dos direitos com violência e preconceito contra LGBTs
É
paradoxal a situação de pessoas LGBTs no Brasil. De um lado, o país desfruta de
conquistas legais bem acima da média mundial; de outro, convive com índices
brutais de violência contra essa população. Estreitar esse abismo constitui um
desafio urgente.
Ao
todo, 69 países criminalizam a relação entre pessoas do mesmo sexo. Esse é o
dado trazido pelo principal relatório
mundial sobre o tema, intitulado “Homofobia de Estado”, produzido
pela Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e
Intersexuais.
Poucos
avanços ocorreram nesta seara —embora o Gabão tenha recuado em um projeto de
lei que impunha multa e prisão para atos homossexuais, e o Sudão tenha revogado
a pena de morte para gays. Esta ainda vigora em seis nações.
No
relatório, o Brasil figura, ao mesmo tempo, entre os países com proteção legal
à comunidade LGBT —reforçada pela criminalização da homotransfobia pelo Supremo
Tribunal Federal em 2019— e entre os que restringem a liberdade sexual, em
razão de leis locais fundamentadas no combate à chamada “ideologia de gênero”.
Aqui,
as conquistas de direitos vieram, em grande medida, por intervenção do Poder
Judiciário, enquanto o Legislativo, historicamente, tem se omitido de maneira
covarde diante dessa agenda.
Entre
os exemplos recentes estão o reconhecimento de união homoafetiva (2011), a
autorização de mudança de sexo no registro civil sem necessidade de cirurgia
(2018) e a revogação da restrição à doação de sangue por homens gays (2020).
A
mobilização da comunidade ganhou força no país a partir dos anos 1970. Em 1978,
foram fundados o primeiro jornal, Lampião, e o primeiro grupo gay, Somos; em
1983, lançou-se em São Paulo manifesto pelos direitos das mulheres lésbicas; em
1997, foi realizada a primeira edição brasileira da parada LGBT na capital
paulista.
Não
obstante, os poucos dados oficiais existentes, entre eles os números do Disque
100 do governo federal e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação
(Sinam) do Ministério da Saúde, não apontam queda da violência contra essa
população, o que é corroborado por pesquisas realizadas por entidades da
sociedade civil.
Neste
arco-íris ambíguo de direitos conquistados, de um lado, e violência e
preconceito contra LGBTs, de outro, o Brasil mostra que caminha para a frente,
mas a passos ainda relutantes.
Apesar de Bolsonaro, governo promete incentivar vacinação – Opinião | Valor Econômico
Ministério
da Saúde vai patrocinar uma ampla campanha de conscientização sobre a segurança
da vacina
Uma
desconfortável sensação de alívio e pesar emerge da posição quase unânime do
Supremo Tribunal Federal (STF) a favor da obrigatoriedade da vacinação contra a
covid-19. Em meio à maior crise sanitária e econômica em décadas - com efeitos
em diversos outros campos da vida social -, uma nação de mais de 200 milhões de
pessoas avança a passos largos para mais de 200 mil mortos pela pandemia.
Indiferente
aos humores do público, o ritmo do recrudescimento de infecções e óbitos aponta
para novos e apavorantes recordes. Atônita, a sociedade testemunha o início da
imunização em alguns países ao mesmo tempo em que vê o seu presidente alertar
para os riscos de que a vacina nos transforme todos em jacarés. Por mais
disparatada que possa parecer, e é, essa guerra de versões teve que ser mediada
pela mais alta corte judiciária do país.
A
semana que começa promete ser decisiva, com a certificação de algumas vacinas
por autoridades sanitárias mundo afora. Por aqui, é aguardada para a próxima
quarta-feira a apresentação do primeiro pedido de registro à Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa). Nesse cenário, o Brasil tem contra si um
ministro da saúde inexperiente e um presidente que insiste em desacreditar a
ciência. Apesar de ter liberado, via medida provisória, os recursos necessários
para a aquisição das vacinas, Jair Bolsonaro não é capaz de se conter.
Para
quem achava que a implicância era restrita à Coronavac, apadrinhada pelo
governador de São Paulo, os ataques do presidente passaram também a mirar a
vacina da americana Pfizer - única já em uso no planeta. Bolsonaro passou a
última semana criticando os termos do acordo com a farmacêutica, fazendo alarde
sobre bizarros efeitos colaterais e, para fechar com chave de ouro, dizendo que
não pretende se vacinar.
Acumuladas
ao longo de meses, as declarações, naturalmente, encontraram ressonância.
Pesquisa Datafolha divulgada na última segunda-feira mostrou uma queda
significativa na disposição dos brasileiros em se submeter à vacinação. Pelos
números apresentados na sondagem, hoje 73% da população pretende se imunizar,
contra 89% que manifestaram a mesma intenção na segunda quinzena de agosto.
Apesar
do galopante descrédito na única porta de saída da pandemia, a maioria dos
brasileiros ainda quer a vacina. Pressionado por essa realidade - e, mais uma
vez, pelo STF -, o governo apresentou seu aguardado plano de imunização. A
estimativa divulgada pelo ministro Eduardo Pazuello é de receber e aplicar pouco
mais de 90 milhões de doses de três vacinas diferentes até o fim de março. Sem
considerar as perdas, seriam aproximadamente 45 milhões de pessoas.
Tudo
vai depender, no entanto, da aprovação dos imunizantes pela Anvisa. O órgão
regulador aprovou recentemente as regras para eventuais pedidos de uso
emergencial das vacinas, procedimento que possibilitou o início da aplicação
das doses na Inglaterra e nos Estados Unidos. Ao que tudo indica, no entanto,
as principais fabricantes vão optar pelo pedido de registro definitivo, o que
consumirá mais tempo, possivelmente algumas semanas.
Na
quinta-feira, Pazuello revelou a senadores que a Pfizer tentou submeter um
pedido de uso emergencial de sua vacina, mas que teria esbarrado em exigências
técnicas “muito detalhadas” por parte da Anvisa. Na mesma reunião,
curiosamente, a diretora responsável pela área de vacinas da agência reguladora
garantiu que nenhum pedido havia sido apresentado até ali.
Sob
intensa pressão política, a Anvisa vem se esforçando para garantir a independência
de seu corpo técnico. Na semana que passou, a diretoria colegiada agiu para
preencher preventivamente a cadeira prometida por Bolsonaro a um militar que já
deu demonstrações públicas de negacionismo. Uma farmacêutica e servidora de
carreira foi colocada na diretoria responsável pela vacina. Ao indicado do
presidente - que já chamou o governador João Dória de “China Boy” - caberá
outra área, desde que a indicação seja chancelada pelo Senado.
Questionado por parlamentares, Pazuello pediu desculpas por ter se queixado do excesso de ansiedade em torno da vacinação. Também garantiu que seu ministério vai patrocinar uma ampla campanha de conscientização sobre a segurança da vacina contra a covid-19. Seria recomendável, no entanto, combinar antes com o principal garoto-propaganda do governo.
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