Ele
lançou sobre um servidor o peso de decisão que só o presidente do Supremo
poderia tomar
Luiz
Fux — para se lavar de um aval que obviamente dera — arranjou-se cuspindo ao
mar um colaborador de terceiro escalão. Aquele exercício covarde de onipotência
típico dos que se sabem inalcançáveis. O presidente do Supremo Tribunal Federal
é um poder inteiro e, no caso do atual, um mestre em jogar para a galera. (Não
tardará, aliás, até que abra enquetes em rede social para que seus seguidores
determinem como deve votar.) Outra coisa, porém, será cultivar a imagem de
homem justo e combatente de regalias afogando um subordinado em injustiça; um
desmando autoritário reativo para não assumir o desmando patrimonialista
original.
Sim. Refiro-me ao caso — um escândalo — em que Fux, pressionado pela imprensa que o adula, decidiu, fingindo-se de chocado, exonerar o secretário de saúde do STF. (Sendo também o caso de perguntar por que o tribunal precisaria de uma tal secretaria.) O doutor Marco Polo Dias Freitas levou a culpa. Pagou pelo ato por meio do qual a Corte constitucional brasileira — vergonhosamente — demandara à Fiocruz uma reserva de 7 mil doses de vacina contra a peste para seus togados e funcionários. Pego em flagrante, Fux — em gesto de rara desonra — lançou sobre um servidor o peso de decisão que só o presidente do Supremo poderia tomar. Um conjunto de arbitrariedades a não ser esquecido. (E que só será surpresa para quem admite o modo como o ministro maneja a Constituição.)
Freitas
foi elegante, impessoal, ao sair, talvez com a intenção de preservar a
instituição a que se dedicava havia década; mas deixou claríssimo o que se
passara: “Respeito rigorosamente a hierarquia administrativa do Supremo
Tribunal Federal. Nesses onze anos no STF, nunca realizei nenhum ato
administrativo sem a ciência e a anuência dos meus superiores hierárquicos”.
Elegante.
Eu também serei. (Quem sabe, assim, este artigo escape da censura no clipping
do tribunal?) E serei igualmente claro. O ofício de requisição da reserva de
doses foi assinado, em 30 de novembro, pelo diretor-geral do Supremo, Edmundo
Veras dos Santos Filho; que, no entanto, manteve o cargo. Fux justificou a
demissão do mais fraco afirmando que o pedido fora feito sem o seu
consentimento. Não é verdade. O presidente do Supremo faltou com a verdade; o
que se prova facilmente, sendo o próprio Fux a se desmentir.
Freitas
foi exonerado em 27 de dezembro. No dia seguinte, o presidente do STF pôs em
campo uma blitz para, em suma, apregoar que não sabia e que não admitia; versão
que rui diante da entrevista veiculada cinco dias antes, em 23 de dezembro,
pela TV Justiça, em que se demonstra não apenas informado sobre o pedido, mas
favorável à demanda. Fala Fux:
—
Nós, por exemplo, fizemos um pedido, de toda forma delicada, ética, um pedido,
dentro das possibilidades, que, quando todas as prioridades forem cumpridas, de
que também os tribunais superiores — que precisam trabalhar em prol da Covid —
tenham meios para trabalhar. E, para isso, precisa vacinar. Não adianta vacinar
os ministros e não vacinar os servidores. A difusão da doença seria exatamente
a mesma.
Que
tal? Que tal essa ética? Mesmo o português truncado de Fux — que decerto
gostaria de trabalhar contra a Covid, e não em prol do vírus — não é capaz de
deixar dúvidas. Nós é nós. Né? Nós somos. O “nós fizemos um pedido” o inclui.
Nós pedimos. Certo? Nós só são os outros — quando o bicho pega, e o bafo da
sociedade esquenta o cangote — na ética fuxiana do bode expiatório. E não deixa
de ser requisição de tratamento prioritário, uma que se queira postar à fila
logo após as prioridades já consagradas. Fim da fila de prioridades ainda
prioridade será. Não há delicadeza nisso.
Fux
não apenas tinha ciência do pedido como — sob visão estratégico-corporativa — avalizou-o.
E diga-se que, fosse verdadeiro que a demanda tivesse sido feita sem sua
chancela, teríamos apenas mais uma exibição de incompetência; e ele precisaria
demitir o diretor-geral. Mas não foi incompetência. Não desta vez. Foi um
movimento natural, consciente, relaxado, de quem se sabe mesmo privilegiado; de
alguém cuja trajetória educou para o hábito do privilégio. Foi desde esse lugar
que o presidente do STF ceifou o doutor Freitas.
Fux,
contudo, ao explicar a demissão covarde do subordinado, disse: “Sempre fui
contra privilégios”. De novo, não é verdade. Temos memória. Ou não terá sido
ele — agora todo enérgico contra decisões monocráticas — o ministro que ficou,
atenção, quatro anos sentado sobre liminar, canetada classista de próprio
punho, que garantiria auxílio-moradia a juízes e procuradores, uma conta
bilionária?
O privilegiado Luiz Fux é o privilégio. Pode tudo. É também um — mais um — ministro da corte constitucional brasileira em quem não se deve confiar.
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