Folha de S. Paulo
Comissão teve elementos de circo político,
mas tornou públicos crimes sérios em duas frentes principais
Como toda CPI, a CPI da Covid —que discute
agora seu relatório final— teve um grande elemento de circo político, servindo
de palanque para opositores do governo fazerem seus discursos, marcarem
posição, aparecerem para a opinião pública, ostentarem sua indignação ou
compaixão para com as vítimas.
Esse espetáculo midiático não trouxe
informações relevantes para a investigação. É preciso dizer que ter Renan
Calheiros como relator apenas realçou esse aspecto e prejudicou a credibilidade
dos trabalhos.
Há também, felizmente, o outro lado da CPI:
a investigação de possíveis crimes levada adiante por senadores que fizeram a
lição de casa (como Alessandro Vieira e Simone Tebet). Graças a eles, a CPI
tornou públicos crimes sérios em duas frentes principais.
A primeira foi a corrupção. Foi graças à CPI que um contrato espúrio, eivado de propina, negociado por membros do Ministério da Saúde com os personagens mais suspeitos e desqualificados, foi identificado e cancelado, economizando cerca de R$ 1,6 bilhão aos cofres públicos.
A segunda frente de investigação foi a do
negacionismo. O governo brasileiro, seguindo a assessoria de um gabinete
paralelo sem transparência e sem amparo técnico, perseguiu uma política de
imunidade de rebanho por contágio, negligenciando a
compra de vacinas em 2020 ao mesmo tempo em que promovia uma cura
fraudulenta para pacientes sintomáticos. Jamais saberemos quantas mortes
adicionais essa conduta ocasionou, mas devem estar nas dezenas de milhares.
O que o presidente tem a ver com isso tudo?
Nos crimes de corrupção não há, até agora, nenhum documento ou depoimento que
prove ligação com ele. Já as condutas negacionistas são inequivocamente obra
de Bolsonaro. E como, ao contrário da corrupção, são bastante
inusitadas e até difíceis de imaginar (um presidente fazendo propaganda de
remédio falso e apoiando pesquisas fraudulentas), ainda não está claro qual a
melhor maneira de enquadrá-las. Charlatanismo? Crime de epidemia? Quanto menos
tipificações forem escolhidas no relatório final, melhor: o tiro certeiro bem
dado é mais forte do que uma dispersão de balas sem alvo.
Nos meios de oposição à esquerda, chamar
Bolsonaro de genocida virou uma espécie de símbolo mobilizador. Mas ele não é
uma boa descrição literal: pois é claro que, por mais perverso que seja,
Bolsonaro não queria matar o povo brasileiro. O combo “imunidade de rebanho +
cloroquina” foi mortal; mas se trata de uma política muito diferente da que
ceifou milhões de vidas de judeus na Alemanha nazista ou de armênios no Império
Otomano.
Resta a acusação mais específica —e
plausível— de genocídio contra os povos indígenas, que
agora é objeto de debate mas recebeu pouca atenção ao longo da CPI. Não duvido
que Bolsonaro tenha as piores intenções para com os povos indígenas, mas, para
afirmar que sua conduta na pandemia foi genocida, é preciso mostrar que ele os
tratou de maneira diferente —e deliberadamente pior— da que tratou o resto da
população.
Que indígenas, quilombolas e o restante dos brasileiros tenham sido submetidos à completa negligência, incompetência e má-fé do governo federal não há dúvidas; que houve a intenção de exterminar qualquer um deles ainda é preciso provar. Nem passapanismo, nem exagero retórico: a descrição justa dos crimes de Bolsonaro deveria guiar o relatório final.
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