Valor Econômico
Agenda pública de encontros com lobistas só
virá depois das eleições
Na primeira metade do século XIX, por
razões humanitárias e também econômicas, a Inglaterra, então senhora do mundo,
passou a exercer grande pressão política para que os nascentes Estados
americanos coibissem o tráfico negreiro. Para atendê-la, em 1831 e 1850 o
Império brasileiro editou leis proibindo primeiro a entrada e depois o comércio
ultramarino de escravos africanos.
Sem fiscalização, contudo, as normas não
surtiram resultado. Essa seria a origem da expressão “para inglês ver”, que
designa iniciativas governamentais lançadas para mostrar serviço, mas que na
verdade não terão efetividade alguma.
No dia em que se comemorou o Dia Internacional contra a Corrupção (9/12), o presidente Jair Bolsonaro publicou o decreto nº 10.889/2021, que institui o Sistema Eletrônico de Agendas do Poder Executivo Federal, batizado de e-Agendas. A iniciativa é boa, pois constitui mais um passo num esforço que remonta ao governo Fernando Henrique - aprimorado depois por Lula, Dilma e Temer - de tornar públicas as agendas de ministros, secretários e outras autoridades.
Atualmente se um cidadão deseja saber, por
exemplo, se algum representante de uma empresa privada está se reunindo com
membros do governo, essa informação, mesmo se for pública, está escondida em
meio a milhares de páginas das agendas oficiais nos sites dos vários
ministérios na internet. A ideia de consolidar tudo num único canal, que
permitirá a realização de buscas por nome, data e assunto da reunião, portanto,
poderá se constituir numa arma poderosa para a imprensa, acadêmicos e organizações
da sociedade civil exercerem o controle social sobre as relações entre agentes
públicos e privados no Brasil.
A criação de um sistema consolidado de
compromissos públicos no Poder Executivo Federal é promessa antiga do ministro
da Controladoria-Geral da União (CGU), Wagner Rosário, e demorou praticamente
três anos para ser regulamentada. Tanto tempo de concepção, porém, não foi
suficiente nem para ser um bom conjunto de regras, nem para entregar o tal
e-Agendas.
O decreto recém-exarado tem lacunas. Ele é
apenas facultativo para estatais (grande foco de corrupção, como atestam
escândalos antigos e atuais) e não obriga a publicação dos encontros de
dirigentes de nível médio - que são geralmente os responsáveis pela elaboração
de pareceres, normas e editais capazes de favorecer empresas em milhões de
reais.
Outro problema da nova regulamentação é a
abertura de uma brecha jurídica que certamente será explorada por autoridades e
lobistas para acobertar da sociedade os acordos tramados entre quatro paredes.
Segundo o decreto nº 10.889, todas as reuniões e compromissos de um agente
público deverão ser publicados no e-Agendas, discriminando dia, hora, local,
lista dos presentes e assunto.
Mas se no evento houver a defesa de
interesses por parte de um agente privado, os órgãos devem acrescentar ao
sistema a identificação do “representante” (o decreto não teve coragem de usar
os termos “lobby” ou “lobista”), a identificação de quem o contratou e o
objetivo do encontro (como a mudança de uma lei ou ato administrativo, um
processo licitatório específico ou a destinação de verbas orçamentárias, por
exemplo).
Essa distinção no grau de detalhamento no
sistema de agendas públicas gera um incentivo para que os agentes públicos,
para diminuírem a transparência, classifiquem todos os seus encontros com
representantes de grupos de interesses como um mero “compromisso”, e não uma
“audiência” (que segundo o decreto é uma reunião em que há defesa de interesse
privado). Se assim for, continuaremos sem saber quem são os lobistas que
circulam pelos gabinetes, quem os remunera e o que pretendem obter junto às
autoridades. Melhor seria exigir o detalhamento de todos.
A crítica a esses detalhes das novas regras
não é mero preciosismo ou má vontade com o projeto. O governo deu mostras
recentes de concessões de benefícios bilionários para agentes privados, após
processos tramitados internamente com muita opacidade.
Com a bênção de Bolsonaro, 17 setores
econômicos arrancaram do Congresso a prorrogação da desoneração da folha de
pagamentos. Sem estudos demonstrando com segurança seus reais efeitos sobre o
emprego, o agrado custará entre R$ 9 bilhões e R$ 10 bilhões para o
contribuinte brasileiro. A medida teria sido incluída na negociação da PEC dos
Precatórios, com as associações das empresas beneficiadas se comprometendo a
convencer “seus” parlamentares a votar em apoio ao governo. Na segunda passada
(6/12), uma medida provisória editada pelo presidente da República atendeu a um
pleito antigo dos donos de instituições privadas de ensino superior. Ao retirar
a exigência de que os agraciados com as bolsas do Programa Universidade para
Todos (Prouni) tivessem necessariamente que ter cursado o ensino médio em
escolas públicas, o governo aumentou significativamente o número de jovens elegíveis
a se matricularem em faculdades particulares e terem 50% de suas mensalidades
custeadas pelos pagadores de impostos. Os grupos empresariais do setor de
educação receberam um superpresente de Natal antecipado.
Nada garante que, se o sistema de agendas públicas
já estivesse em vigor, as medidas acima, e tantas outras, não teriam sido
implementadas - mas a sua existência poderia ter facilitado a identificação dos
movimentos lobistas com antecedência, evitando que a imprensa e cidadãos
preocupados com a boa destinação dos recursos públicos fossem pegos de
surpresa, às vésperas da implantação dos benefícios privados à custa de toda a
coletividade.
A maior surpresa, contudo, ficou reservada
para o fim do novo decreto. No seu último artigo, determinou-se que o sistema
e-Agendas entrará em vigor somente em 9 de outubro de 2022. Ou seja, até as
eleições do ano que vem teremos dificuldade de saber quem se encontra com quem
no governo Bolsonaro.
Um governo que promete uma medida por três
anos e, quando publica o decreto, anuncia que só vai entregá-la depois das
eleições, não pode ser levado a sério.
*Bruno Carazza é mestre em
economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as
engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
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