O Globo
‘Temos
de estar atentos ao discurso da direita. Por que essa gente voltou a convencer
uma parcela da sociedade?’, indagou Lula num evento do partido espanhol
Podemos, durante sua recente turnê europeia. A pergunta, sábia, tem abrangência
internacional. Há, claro, inúmeras respostas não excludentes. Uma delas emerge
da constatação de que George Floyd não é, necessariamente, negro.
Em 2020, das 1.021 pessoas mortas pelas polícias dos EUA, 459 eram brancas, 241 negras e 169 hispânicas. Não foi um ano atípico: estatísticas similares repetem-se com regularidade. Contudo contrastam com a percepção de que o uso de força letal pela polícia americana é um problema da minoria negra. Floyds têm todas as cores — e, na sua maioria, são brancos.
Negros perfazem 13% da população dos EUA.
Certamente, a chance de um negro ser morto por policiais é maior — mais de duas
vezes maior — que a de um branco. Mas, por si só, a desproporção não prova
racismo: os negros concentram-se em bairros mais pobres, que são focos
principais de criminalidade.
Diversos estudos comprovam que as polícias
discriminam negros ao selecionar motoristas ou pedestres para revistas. Abusos
verbais de policiais são dirigidos especialmente a negros. Mas estudos
controlados dirigidos pelo economista Roland Fryer, de Harvard, em 2016,
revelam que, levando em conta fatores como a posse de arma pelos suspeitos,
inexiste predisposição racial nas mortes a tiros.
Sob os paradigmas do policiamento
militarizado e da “guerra ao crime” vigentes nos EUA, os agentes não escolhem a
cor dos alvos de ações letais. Escolhem, porém, a classe social: quase todas as
vítimas fatais são pobres. Só que essa parte crucial da história fica
praticamente ausente de um noticiário cujo foco é, sempre, racial.
O fluxo de notícias deriva menos de estudos
científicos que da temperatura política. A justa indignação provocada pelo
assassinato de George Floyd acentuou a tendência a conectar a violência
policial à cor da pele — e a deixar na sombra o fator classe social. Tudo se
passa como se brancos pobres nada tivessem a temer quando, de fato, são as
vítimas mais numerosas de disparos de policiais.
O olhar enviesado reflete a mudança radical
de paradigmas. Sob o impulso de sua ala esquerda, o Partido Democrata esqueceu
que existem classes sociais, substituindo-as por marcadores identitários: cor
da pele, origem, herança cultural, gênero, orientação sexual. O discurso
político preponderante dirige-se às “minorias”: negros, latinos, mulheres,
LGBTs. De modo mais ou menos camuflado, os brancos em geral — e, em especial,
os homens brancos — passaram a ser tratados como uma espécie de classe
dominante.
No seminário do Podemos, Lula refinou sua
pergunta, interrogando-se sobre os erros da esquerda que permitiram o triunfo
de Donald Trump em 2016. Suspeito que o núcleo da resposta tenha relação com os
Floyds brancos. Trump moldou seu discurso ao “americano esquecido”, falando à
maioria, enquanto os democratas apelavam a uma coleção de “minorias”. Venceu
porque obteve imenso sucesso entre os brancos sem diploma universitário —e, em
2020, provou na derrota que a política de maioria tem forte apelo entre a vasta
“minoria” de hispânicos.
A política identitária alastrou-se mundo
afora. Os partidos de esquerda renunciaram às pautas tradicionais, concentradas
nas desigualdades sociais. A direita nacionalista ocupou o vácuo, falando ao
“povo” — ou seja, à maioria. Nos EUA e na Europa, o voto de esquerda tornou-se
típico das elites urbanas com educação superior, enquanto a massa de
trabalhadores girou à direita. É por isso que “essa gente” — a direita —
experimentou triunfos eleitorais chocantes.
O cenário brasileiro não é uma reprodução
do americano ou do europeu. Por aqui, o PT, maior partido de esquerda,
conservou seu foco no tema das desigualdades. Bolsonaro venceu, nas condições
excepcionais da depressão econômica, falando sobre corrupção. Mas que ninguém
se engane: a extrema direita também surfa na oposição ao discurso identitário
que enxerga cores onde existem classes.
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