Folha de S. Paulo
Caberá a Kassio Nunes e André Mendonça
deixar claro que servem apenas à Constituição
O Supremo é uma criatura da Constituição,
tal como o Congresso, as Forças Armadas ou o SUS. Suas atribuições não estão à
disposição de quem quer que seja. Guardar a Constituição é sua missão precípua.
O presidente da República oferece
reiteradas demonstrações de não se conformar com isso. Não bastassem os ataques
e ameaças, a cada momento em que o tribunal impugna um de seus atos arbitrários
ou contraria os interesses de seus acólitos, o presidente passou a se gabar,
com a nomeação de um segundo ministro, de possuir 20% do tribunal, deixando
claro a empresários
embevecidos na Fiesp que, se reeleito, dobraria sua
quota no tribunal.
Não se trata apenas de uma tosca
manifestação de um arruaceiro. Bolsonaro segue fielmente a nova cartilha dos
populistas autoritários, que determina a captura das instituições democráticas,
especialmente aquelas responsáveis pela aplicação da lei.
Nesse contexto, muitos têm questionado a nomeação de um ministro "terrivelmente evangélico" para o tribunal. A religião de qualquer ministro me parece um dado absolutamente irrelevante. O mais preocupante foram suas demonstrações de deslealdade constitucional ao exercer a autoridade pública, permitindo da elaboração de dossiês contra adversários do governo ao emprego da extinta lei de segurança nacional para intimidar jornalistas e opositores.
O desafio de qualquer um que chegue a um
tribunal numa democracia é demonstrar que suas preferências pessoais,
ideologia, vínculos políticos e mesmo a mais arraigada fé religiosa, não
interferirão no exercício da tarefa de defender os direitos e as instituições
estabelecidas pela Constituição, mesmo quando entrarem em confronto com suas
mais profundas crenças e valores pessoais.
Não se trata de tarefa fácil. O caso da
revista Realidade, julgado num dos períodos mais duros do regime militar, no
entanto, deveria servir de exemplo de como juízas e juízes deveriam se
comportar quando seu valores entram em choque com as regras da Constituição.
A revista havia sido censurada por um juiz
de menores que a julgou obscena, por trazer uma ampla reportagem generosa com
mães solteiras, inclusive com fotos de um parto.
Instalou-se no Supremo um debate sobre ser
ou não a revista obscena. Foi quando o ministro
Aliomar Beleeiro,
nomeado por Castelo Branco, católico, ex-deputado da UDN, que apoiou o golpe
militar, mudou o rumo do debate.
O julgamento sobre a obscenidade, de acordo
com Baleeiro, não poderia ser entregue "ao arbítrio do juiz... conforme
lhe der na cabeça, segundo sua concepção pessoal ou visão religiosa...".
As pessoas "têm concepções de vida diferentes das nossas. Não podemos
impor os nossos padrões" às demais pessoas, argumentava Baleeiro com seus
colegas da segunda turma do Supremo Tribunal Federal, a mesma que será ocupada
por André Mendonça.
Magistrados, como as demais pessoas, são
fortemente influenciados por seus valores, visões de mundo, preconceitos,
muitas vezes escondidos no íntimo de seus inconscientes, quando tomam decisões.
Bons magistrados são aqueles que, através de um processo reflexivo e muita
disciplina profissional, não submetem os seus jurisdicionados se não àquilo que
determina a lei, como o fez Aliomar Baleeiro, no caso da revista Realidade.
Bolsonaro cravou na testa de Kassio Nunes e
André Mendonça de que eles são seus ministros. Mais, que Mendonça foi para o
tribunal por ser "terrivelmente evangélico". Caberá a eles, no dia a
dia da judicatura, deixar claro que não têm dono. Que servem apenas
à Constituição.
Nenhum comentário:
Postar um comentário