O Globo
Não há como não sentir certo desconforto
com um sistema penal que tão depressa deixa tantos criminosos livres, leves e
soltos
A intolerância e a impunidade não vicejaram
no Brasil da noite para o dia. Faz tempo que vimos tolerando os intolerantes e
tendo pena dos impunes.
O casal que assassinou a atriz Daniella
Perez passou menos de sete anos na prisão. Se na Black Friday tudo custa a
metade do dobro, pelo Código Penal os descontos são bem mais vantajosos: vão de
60% (crimes hediondos) a 83,33% (crimes comuns).
A progressão da pena também já beneficiou a moça que mandou executar os pais, a mulher que atirou no marido e o esquartejou, o casal que asfixiou a filha de 5 anos e a jogou pela janela, o goleiro que matou a ex-amante e deu sumiço no corpo. Em breve, entrarão nessa lista a dona de casa que envenenou os filhos do marido, o vereador que espancou até a morte o enteado de 4 anos e mais alguns milhares de feminicidas, infanticidas, parricidas e afins. Entre estes, se condenados, o policial que invadiu uma festa e assassinou o aniversariante (por “provocações políticas” ) e o médico que estuprou sabe-se lá quantas gestantes durante o parto.
O bom senso recomenda não ir ao
supermercado quando se está com fome ou querer mudar as leis em momento de
comoção (estômago vazio e desejo de vingança são péssimos conselheiros). Mas
não há como não sentir certo desconforto com um sistema penal que tão depressa
deixa tantos criminosos livres, leves e soltos.
Esse tipo de pensamento é tachado de
“cultura do punitivismo”. Mas, se a pena serve para que o Estado reeduque e reinsira
na sociedade aqueles que infringiram a lei, qual será o tempo necessário para
que um psicopata ou um fanatizado voltem, regenerados, ao convívio social?
Não é de uma hora para a outra que um
médico decide pôr em risco a vida da parturiente e do nascituro, com doses
excessivas de sedativos, e consumar um estupro — em pleno centro cirúrgico,
diante de uma equipe médica. Até adquirir tamanha desenvoltura, houve um longo
aprimoramento da técnica. Muitos sinais devem ter sido percebidos — e
ignorados.
— Para prender Lula, vai ter que matar
gente — ameaçou Gleisi Hoffmann em 2018.
Meses depois, Bolsonaro conclamava os
acrianos:
— Vamos fuzilar a petralhada.
Em 2017, Benedita da Silva se amparava na
Bíblia para profetizar que “sem derramamento de sangue, não há redenção”. A
mesma Bíblia invocada meses antes por Bolsonaro:
— Não existe essa historinha de Estado
laico, não. O Estado é cristão. Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As
minorias se adequam ou simplesmente desaparecem.
Avisos de radicalização não faltaram — e
foram relevados. Eram “em sentido figurado” —pelo menos até a semana passada.
A demora da Justiça em perceber que não
está fazendo jus ao nome pode levar o pêndulo para o lado oposto da leniência,
a demanda por penas severas demais. E termos sido tão condescendentes com a
radicalização política, a uma ruptura de consequências imprevisíveis.
Nada que um pouco mais de compliance
(conformidade com as leis e padrões éticos) e menos de complacência não
ajudassem a resolver.
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