sábado, 16 de julho de 2022

Eduardo Affonso - Mais compliance e menos complacência

O Globo

Não há como não sentir certo desconforto com um sistema penal que tão depressa deixa tantos criminosos livres, leves e soltos

A intolerância e a impunidade não vicejaram no Brasil da noite para o dia. Faz tempo que vimos tolerando os intolerantes e tendo pena dos impunes.

O casal que assassinou a atriz Daniella Perez passou menos de sete anos na prisão. Se na Black Friday tudo custa a metade do dobro, pelo Código Penal os descontos são bem mais vantajosos: vão de 60% (crimes hediondos) a 83,33% (crimes comuns).

A progressão da pena também já beneficiou a moça que mandou executar os pais, a mulher que atirou no marido e o esquartejou, o casal que asfixiou a filha de 5 anos e a jogou pela janela, o goleiro que matou a ex-amante e deu sumiço no corpo. Em breve, entrarão nessa lista a dona de casa que envenenou os filhos do marido, o vereador que espancou até a morte o enteado de 4 anos e mais alguns milhares de feminicidas, infanticidas, parricidas e afins. Entre estes, se condenados, o policial que invadiu uma festa e assassinou o aniversariante (por “provocações políticas” ) e o médico que estuprou sabe-se lá quantas gestantes durante o parto.

O bom senso recomenda não ir ao supermercado quando se está com fome ou querer mudar as leis em momento de comoção (estômago vazio e desejo de vingança são péssimos conselheiros). Mas não há como não sentir certo desconforto com um sistema penal que tão depressa deixa tantos criminosos livres, leves e soltos.

Esse tipo de pensamento é tachado de “cultura do punitivismo”. Mas, se a pena serve para que o Estado reeduque e reinsira na sociedade aqueles que infringiram a lei, qual será o tempo necessário para que um psicopata ou um fanatizado voltem, regenerados, ao convívio social?

Não é de uma hora para a outra que um médico decide pôr em risco a vida da parturiente e do nascituro, com doses excessivas de sedativos, e consumar um estupro — em pleno centro cirúrgico, diante de uma equipe médica. Até adquirir tamanha desenvoltura, houve um longo aprimoramento da técnica. Muitos sinais devem ter sido percebidos — e ignorados.

— Para prender Lula, vai ter que matar gente — ameaçou Gleisi Hoffmann em 2018.

Meses depois, Bolsonaro conclamava os acrianos:

— Vamos fuzilar a petralhada.

Em 2017, Benedita da Silva se amparava na Bíblia para profetizar que “sem derramamento de sangue, não há redenção”. A mesma Bíblia invocada meses antes por Bolsonaro:

— Não existe essa historinha de Estado laico, não. O Estado é cristão. Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem.

Avisos de radicalização não faltaram — e foram relevados. Eram “em sentido figurado” —pelo menos até a semana passada.

A demora da Justiça em perceber que não está fazendo jus ao nome pode levar o pêndulo para o lado oposto da leniência, a demanda por penas severas demais. E termos sido tão condescendentes com a radicalização política, a uma ruptura de consequências imprevisíveis.

Nada que um pouco mais de compliance (conformidade com as leis e padrões éticos) e menos de complacência não ajudassem a resolver.

 

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