sábado, 16 de julho de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

A apatia que destrói o País

O Estado de S. Paulo

Quando se trata da deterioração da ordem constitucional, não há polarização, não há oposição. Bolsonaro e oposição atuam juntos para avacalhar a Constituição. O País precisa reagir

O governo de Jair Bolsonaro conseguiu que o Congresso aprovasse uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que burla as regras fiscais e eleitorais, permitindo a criação e ampliação de benefícios sociais em ano eleitoral. Autorizou-se a compra de votos. A manobra foi tão acintosamente inconstitucional que era preciso, desde o seu nascedouro, protegê-la do controle do Judiciário. A solução não podia ser mais escrachada: instituiu-se, por via constitucional, um estado de emergência motivado em razão da “elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo”. A Constituição foi manipulada para impedir a plena vigência da própria Constituição.

A PEC do Desespero é um retrato do governo de Jair Bolsonaro. Não há planejamento, não há responsabilidade fiscal ou social, não há respeito pelas regras do jogo. Tudo está orientado para as eleições. E, nessa empreitada, não há limite legal, constitucional ou moral. Vale tudo.

O cenário é, no entanto, ainda mais desolador, uma vez que a PEC do Desespero teve apoio da oposição. No Senado, o único voto contrário foi o do senador José Serra (PSDB-SP). Na Câmara, o único partido que orientou o voto contrário foi o Novo. Na Casa regida por Arthur Lira (PP-AL), a PEC eleitoreira teve, no primeiro turno, 425 votos favoráveis (7 contrários) e 469 no segundo (17 contrários).

Os votos no Congresso escancaram uma realidade preocupante. Quando se trata da deterioração da ordem constitucional, não há polarização nem oposição. Observa-se uma incrível tolerância dos partidos e dos parlamentares às manobras do bolsonarismo. Senadores da oposição, que dizem fazer resistência a Jair Bolsonaro, deram o mesmo voto que Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Deputados da oposição, como Tábata Amaral (PSB-SP), Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e Ivan Valente (PSOL-SP), aprovaram a PEC apoiada por Eduardo Bolsonaro (PL-SP).

Onde está a oposição quando o presidente Jair Bolsonaro debocha e humilha a Constituição? Onde está o centro democrático responsável? E não se diga que a PEC do Desespero foi uma exceção, motivada por circunstâncias excepcionais. Nada justifica arrombar a Constituição. Além do mais, a mais recente PEC – gravíssima e rigorosamente antirrepublicana – é mais uma entre tantas PECs. Desde 2019 até agora, o Congresso aprovou 26 Emendas Constitucionais (ECs), número que supera até o do altamente reformista segundo mandato de FHC (19 ECs).

Eis o grande problema. No momento em que a ordem democrática se vê mais atacada desde a Constituição de 1988, não existe resistência por parte do Legislativo. Não se fala aqui apenas dos pedidos de impeachment não analisados, que são um escândalo institucional. O Congresso não apenas manteve Jair Bolsonaro impune no cargo, como fez-lhe as vontades, aprovando nada mais nada menos do que 26 ECs - que exigem votação em dois turnos e aprovação de três quintos de cada Casa Legislativa.

Se não se vê resistência no Congresso, tampouco há resistência na sociedade civil organizada. Tudo tem sido encarado com uma enorme passividade. Onde estão os partidos e as entidades civis para denunciar o atropelo da ordem representado pela pretensão do Ministério da Defesa de fazer uma fiscalização paralela (ilegal e inconstitucional) das eleições? Em vez de defender a ordem democrática e de organizar seu partido para que seja a real resistência a Jair Bolsonaro no Congresso, o pré-candidato que aparece na frente das pesquisas, o sr. Lula da Silva, aproveita para pedir voto, como se as próprias eleições não estivessem sendo ameaçadas. Tudo se converte em ocasião para transformar a eleição num único turno. Em vez de defender a liberdade política do eleitor, deseja-se reduzi-la, privando-o de conhecer melhor as propostas dos candidatos num segundo turno.

Falta oposição, mas sobra oportunismo. Enquanto isso, Bolsonaro obteve autorização do Congresso para distribuir dinheiro aos eleitores, protegido por um dispositivo constitucional dizendo que, em 2022, as regras eleitorais, fiscais e constitucionais não valem porque os preços do petróleo estavam imprevisíveis. É a avacalhação total do sistema de freios e contrapesos. O País precisa reagir.

Insegurança atrasa a educação

O Estado de S. Paulo

É inaceitável que, como mostra o IBGE, quase 1/5 dos alunos do 9.º ano do fundamental falte à aula, nas redes pública e privada das capitais, pela

A falta de segurança fez dobrar o porcentual de alunos que perderam aulas nas capitais dos 26 Estados e em Brasília, na última década. Os dados dizem respeito a estudantes do 9.º ano do ensino fundamental, na rede pública e na particular, e foram divulgados recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entre 2009 e 2019, o índice saltou de 8,6% para 17,3%. O que significa que quase um quinto dos alunos faltou à escola por motivos relacionados à violência e à insegurança, ao final do período. É assombroso e inaceitável.

O recém-lançado balanço reúne informações de quatro edições da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE). Pela primeira vez, foi possível comparar resultados coletados em anos diferentes. Com isso, o IBGE contribui para que se compreenda melhor o tamanho do desafio enfrentado pelas redes de ensino. Como se sabe, inúmeros fatores externos à escola, a exemplo da falta de segurança, podem ser prejudiciais à educação. Um deles, infelizmente, é a violência que leva tamanha parcela de alunos a faltar às aulas.

A situação se agrava em países com desigualdades gritantes como o Brasil, considerando que a falta de segurança tende a ser maior nas áreas onde vivem as famílias de menor renda e escolaridade − outras duas variáveis externas à escola que também impactam negativamente a aprendizagem. Embora o levantamento do IBGE não informe quantas aulas cada estudante perdeu, é notório que os prejuízos vão além do número de dias de ausência.

Realizada por amostragem, a pesquisa aborda temas variados. No caso do impacto da violência sobre a frequência escolar, a pergunta a ser respondida era se, nos 30 dias anteriores à coleta de dados, o aluno havia deixado de comparecer à escola por falta de segurança, fosse no trajeto de ida e volta para casa ou na própria escola. Parece razoável supor que, mesmo nos dias em que vão às aulas, muitos desses estudantes continuem sujeitos a traumas, constrangimentos e aflições que em nada contribuem para seu rendimento escolar. Sem falar que a própria dinâmica das turmas e do ensino é prejudicada quando muitos alunos não comparecem. 

Em 2019, o Rio de Janeiro, seguido por Belém, liderava esse indecoroso ranking das capitais com maior porcentual de alunos afetados pela falta de segurança. No Rio, 23,4% dos entrevistados afirmaram ter perdido aulas por causa da violência naquele ano. Em Belém, foram 23%. Vale notar que, dez anos antes, em 2009, o índice carioca havia ficado em 8,9% e o de Belém, em 9,3%. Ou seja, em ambas as capitais esse indicador mais do que dobrou ao longo da década. A cidade de São Paulo, por sua vez, registrou aumento de 9% para 16,9% no mesmo período − o índice paulistano era o 12.º maior entre as capitais em 2019. Note-se que, no levantamento de 2009, o índice de São Paulo era 0,1 ponto porcentual maior que o do Rio.

O problema da falta de segurança afeta menos alunos nas escolas particulares, mas nem por isso é menos preocupante. Em 2019, a taxa ficou em 12,1% na rede privada. Na rede pública, em 19,3%. Chama a atenção também que, mesmo entre estudantes de escolas particulares, o índice mais do que dobrou no período pesquisado (de 5,4% para 12,1%). O recorte por gênero revela que alunas são mais impactadas que alunos. Na média das capitais, 20% das meninas afirmaram ter faltado à aula por não se sentirem seguras no trajeto para casa ou na própria escola, em 2019, ante 14,4% dos alunos. Em Belém, o índice feminino atingiu 28,8%.

Políticas educacionais, cada vez mais, exigem articulação com órgãos de outras áreas, como segurança pública, assistência social, saúde, Justiça e cultura. Como se não bastasse o desafio de melhorar os níveis de aprendizagem, as redes de ensino precisam estar atentas à necessidade de envolver outros setores na busca de soluções. Nesse sentido, necessitam do irrestrito apoio dos respectivos governadores e prefeitos, sem falar do governo federal. O balanço do IBGE mostra como é imperioso resolver problemas fora da escola para que a educação possa ter êxito.

Economia em modo de espera

O Estado de S. Paulo

Atividade perde impulso em abril e maio e pode reagir, mas há muita incerteza sobre inflação, juros e contas públicas

Depois de um primeiro trimestre vigoroso, a economia recuou 0,64% em abril e ficou quase estável no mês seguinte, com mais uma perda de 0,11%, segundo o Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br). Valorizado como sinalizador de tendência, esse é um dos indicadores usados como prévias mensais do Produto Interno Bruto (PIB), divulgado oficialmente a cada três meses. Embora os dados de maio apontem uma economia em modo de espera, analistas do mercado financeiro estimam pequeno avanço no segundo trimestre e alguns têm elevado as projeções para o ano. Novos cálculos têm apontado para 2022 taxas de expansão na faixa de 1,5% a 2%. Mas a melhora esperada será passageira e 2023 será, de acordo com as previsões correntes, um ano de negócios em marcha lenta, com o PIB avançando cerca de 0,50%.

É muito cedo para dizer com alguma segurança como ficará a economia neste semestre, porque há fatores de incerteza muito importantes, como a disputa eleitoral, a política fiscal, o cenário externo, os juros e o câmbio. Os dados oficiais conhecidos até agora compõem um cenário de baixo dinamismo e grandes desajustes. Em maio, a produção industrial cresceu 0,3%. O resultado mensal foi positivo pela quarta vez consecutiva, mas o avanço acumulado nesse período foi insuficiente para zerar o recuo de 1,9% registrado em janeiro.

Ainda em maio as vendas no varejo aumentaram 0,1%, mas o volume foi 0,2% inferior ao de um ano antes. Em 12 meses o total vendido foi 0,4% menor que o do período imediatamente anterior. O resultado foi um pouco melhor no varejo ampliado. Este conjunto maior é formado pela soma dos oito ramos de comércio de consumo corrente com as lojas de veículos, seus componentes e materiais de construção. Neste grupo maior, as vendas cresceram 0,3% em 12 meses.

Em todos os casos, a alta de preços é bem marcada. No varejo restrito, as vendas acumuladas no ano, por exemplo, superaram por 1,8% as de janeiro a maio de 2021, mas a receita nominal foi 16,8% maior. Esse é um evidente efeito da inflação.

O melhor desempenho, de acordo com as últimas informações, foi o do setor de serviços graças, principalmente, ao avanço da vacinação e ao retorno das atividades presenciais, em restaurantes, lanchonetes, barbearias, salões de beleza, hotéis, ônibus e aviões. Em maio, o volume de serviços prestados foi 0,9% maior que o de abril e superou por 9,2% o de um ano antes. A receita nominal aumentou 1,6% no mês e foi 18,8% maior que a de maio de 2021. O aumento da receita, muito maior que o dos serviços prestados, evidencia também no caso dos serviços o impacto da inflação.

O rápido aumento de preços de bens e serviços diminui o poder de compra das famílias e enfraquece um dos principais motores da produção. A isso ainda se acrescenta, no entanto, a elevação dos juros, política usada pelo Banco Central para frear a inflação. O crédito caro afetará os negócios nos próximos meses e será preciso incluir esse fator em qualquer projeção da atividade econômica no segundo semestre e também no próximo ano.

Retrocesso militar

Folha de S. Paulo

Questionamentos das Forças Armadas sobre segurança das urnas eletrônicas são inaceitáveis

É deplorável que setores proeminentes das Forças Armadas, a começar pelo ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, venham alimentando o discurso de teor golpista do presidente Jair Bolsonaro (PL) acerca de fantasmagóricas fraudes que poderiam impedi-lo de vencer as eleições.

Desde a implantação das urnas eletrônicas no Brasil, em nenhum momento militares se manifestaram ou questionaram o sistema. Tampouco Bolsonaro, em sucessivas votações ao longo de sua carreira política, colocou em xeque a lisura dos resultados que obteve.

Formalmente, representantes das Forças Armadas passaram a levantar questões sobre a votação eletrônica a partir do final do ano passado, de acordo com informações do Ministério da Defesa e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) obtidas por esta Folha por meio da Lei de Acesso à Informação.

A mudança de atitude foi estimulada, diga-se, pelo próprio TSE. Logo depois de a Câmara ter derrotado proposta legislativa de adoção do voto impresso, o então presidente da corte, Luís Roberto Barroso, anunciou, entre outras medidas, a formação de uma Comissão de Transparência Eleitoral.

Ao lado de universidades, entidades da sociedade civil e outros órgãos públicos, as Forças Armadas foram convidadas a participar do colegiado, que se destinava a acolher sugestões e a reforçar a credibilidade do processo.

Na prática, a intenção conciliadora do magistrado, de suplantar desconfianças, não se revelou das mais felizes. Chamado a discutir o sistema eleitoral, o Ministério da Defesa encontrou espaço institucional para justificar a ingerência em temas que não dizem respeito à missão constitucional das Forças Armadas.

Desde o fim de 2021 mais de 80 questionamentos foram produzidos por militares, além de sete sugestões de mudanças nas regras das eleições.

Num ambiente político minado por ameaças do presidente às instituições e por um renitente esforço de atrair e politizar a atuação das Forças Armadas, tornou-se muito tênue a linha que poderia separar considerações meramente técnicas acerca de urnas eleitorais de um ativismo em tudo impróprio e deletério para o processo.

Tradicionalmente convidados a contribuir com a logística do pleito, os militares deveriam, no que tange às eleições, se ater a essa tarefa.

Após um longo período em que parecia se consolidar uma nova e promissora adequação das Forças Armadas às suas atribuições constitucionais, observam-se hoje no Brasil sinais preocupantes de retrocesso. É preciso evitar que eles prosperem e coloquem em risco a normalidade democrática.

Senado envenenado

Folha de S. Paulo

Pacheco, acumpliciado com ruralistas sem freios, passa a boiada contra o ambiente

Não foi apenas no caso da PEC da reeleição que o Congresso se açodou, atropelando leis e normas para avançar interesses do que há de mais atrasado no Brasil. Sozinho, o Senado trabalha a toque de caixa também para aprovar matérias danosas ao ambiente em favor do agronegócio predatório.

O presidente da casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), abandonou todos os escrúpulos regimentais para passar a qualquer custo, antes do recesso no dia 18, o projeto de lei 6.299. É o chamado PL do Veneno.
Aprovado na Câmara, o texto amplia o poder do Ministério da Agricultura para licenciar agrotóxicos. Ficariam alijados órgãos antes ouvidos nas pastas de Ambiente, o Ibama, e da Saúde, a Anvisa.

Esse é somente um dos oito projetos criticados por organizações e pesquisadores ambientais, pauta que recebeu o apelido de "Boiadinha". Uma referência à reunião no Planalto em que Ricardo Salles defendeu sabotar o arcabouço conservacionista a golpes de portarias e instruções normativas.

Congressistas ouviram o apito, ou melhor, o berrante, e estouraram a boiada. Afinal, se podem mudar as leis e até a Constituição, para que se limitar às normas infralegais?

Pacheco não se detém, na adesão ao tropel ruralista, diante dos costumes do Parlamento. Uma semana depois de decidir em março que o PL do Veneno passaria antes pela Comissão do Meio Ambiente, ele mudou seu despacho para limitar a tramitação só à de Agricultura.

Pior, a passagem pelo órgão dominado pela bancada do agro se dá em caráter terminativo. Na quinta-feira (14), o presidente da Comissão de Agricultura, Acir Gurgacz (PDT-RO), cancelou audiências públicas acordadas com opositores e marcou a votação decisiva já na próxima semana.

Passar o trator virou norma no Congresso. Pacheco, que um dia cogitou vestir o figurino de negociador para perfilar-se como pré-candidato à Presidência da República, rasgou a fantasia.

Segue agora, na pauta antiambiental e na irresponsabilidade fiscal eleitoreira, o estilo coronelista adotado por Arthur Lira (PP-AL) na condução da Câmara. Há que aproveitar rápido, sem os freios e contrapesos do debate público, o clima de fim de festa —ou de caos — no governo de Jair Bolsonaro.

Considerações quanto aos efeitos de médio e longo prazo para o país, suas finanças e sua natureza ímpar, foram mandadas às favas. Favas envenenadas.

Reduzir miséria e mal-estar é desafio do próximo governo

O Globo

Medidas eleitoreiras serão incapazes de reverter retrocesso na qualidade de vida dos pobres sob Bolsonaro

Inflação, dívidas e desemprego contribuíram para deteriorar a um ponto crítico a vida dos mais pobres, revela uma pesquisa da UFRJ publicada pelo GLOBO. É preciso enfrentar a questão com a máxima prioridade, mas sem cair na tentação do populismo como faz o governo, com nítidos contornos eleitoreiros. A Emenda Constitucional promulgada nesta semana decretando um estapafúrdio “estado de emergência” serve apenas para atropelar as leis fiscais e eleitorais, sem trazer uma resposta à altura para o mal-estar dos mais pobres.

Ao contrário. O aumento do Auxílio Brasil para R$ 600, o vale para caminhoneiros autônomos e taxistas, o incremento de 100% no vale-gás e as demais benesses concedidas pela operação vergonhosa que aprovou a emenda no Congresso são apenas paliativos de efeito incerto para os mais necessitados — que abrirão um rombo certo no Orçamento, superior a R$ 41 bilhões. Ninguém acredita que o próximo governo, em nome da saúde fiscal, retrocederá nos benefícios concedidos.

Há, ainda, cortes de impostos que só vigoram até o final do ano, como a eliminação do PIS e Cofins para a indústria ou de impostos federais sobre os combustíveis. No vale-tudo eleitoral, o governo semeou incertezas para 2023. Como resultado, o próximo presidente receberá de herança o abalo institucional da credibilidade fiscal, uma percepção de risco maior sobre a solvência da dívida pública brasileira, portanto maior dificuldade para conter a pressão inflacionária, causa essencial do mal-estar dos mais pobres.

Liderado pelo economista João Saboia, o estudo da UFRJ detectou uma alta sem paralelo no “índice de miséria” em apenas um ano. Entre 2020 e 2021, o indicador, uma espécie de termômetro da qualidade de vida da população de baixa renda, subiu 60% — de 0,59 para 0,95, numa escala de 0 a 1. Trata-se do patamar mais elevado em uma década. A partir de 2019, início do governo Jair Bolsonaro, a situação da população mais pobre só piorou.

O cálculo do índice leva em conta vários dados cujo impacto é decisivo para a vida dos pobres: nível de subemprego, renda familiar per capita na faixa da população com renda mais baixa, desigualdade em relação à faixa de renda mais alta e inadimplência.

Do universo pesquisado, 27,2% estão com dívidas em atraso, situação melhor apenas que no auge da pandemia. O custo da alimentação subiu 40% desde janeiro de 2020 até junho passado. Não surpreende que a fome tenha se agravado. De acordo como o último relatório das Nações Unidas sobre a fome no mundo, a insegurança alimentar grave no Brasil subiu de 3,9 milhões de pessoas (1,9% da população) entre 2014 e 2016 para 15,4 milhões entre 2019 e 2021 (7,3%), período do governo Bolsonaro. Tal retrocesso é simplesmente inaceitável.

Além de reerguer os programas sociais com foco nas necessidades da população mais pobre — e não em grupos eleitoralmente cobiçados, como caminhoneiros ou taxistas —, o presidente eleito em outubro precisará de um programa econômico minimamente crível, capaz de desarmar as bombas fiscais criadas pelo atual governo e de gerar uma atmosfera que resgate os investimentos e o crescimento. Esse é o único caminho duradouro para reduzir o mal-estar da população.

Telescópio Espacial James Webb é vitória da Ciência — e obra de arte

O Globo

Imagens estonteantes do Cosmo mostram que correr riscos é essencial para o avanço do conhecimento

Quando foi lançado ao espaço no último Natal, o Telescópio Espacial James Webb (JWST) ainda inspirava ceticismo. Estava vivo na memória de quem acompanha as peripécias da Nasa o fiasco das primeiras imagens enviadas em 1990 por seu antecessor, o Hubble. Pois a visão estonteante do Cosmo divulgada nesta semana, gerada apenas 12 horas depois que o JWST começou a funcionar, mostra que correr riscos é fundamental para o avanço da Ciência.

O Hubble só começou a cumprir a promessa de oferecer uma visão inédita do céu, desimpedida da interferência da atmosfera terrestre, três anos depois do lançamento, à custa de vários consertos em pleno espaço. O JWST não poderia se dar ao mesmo luxo, pois não está na órbita terrestre, acessível a missões espaciais. Foi colocado a 1,5 milhão de quilômetros da Terra em órbita do Sol, protegido do astro por um escudo com fator de proteção solar 1 milhão, que permite a visão sem obstáculo do Cosmo e a manutenção da temperatura próxima do zero absoluto, exigida pelos equipamentos mais importantes para enxergar mais longe.

O acúmulo de novas especificações técnicas e garantias de segurança adiou o início da operação por 15 anos e elevou o custo dos US$ 500 milhões inicialmente previstos em 1996 para US$ 9,7 bilhões, cifra que combina com a ambição astronômica do projeto. Seus espelhos de berílio folheado a ouro têm seis vezes a área de captação de luz do Hubble — e propiciam cem vezes o poder de visão. Graças à capacidade de captar radiação infravermelha, o JWST poderá, dizem os otimistas, enxergar até 13,5 bilhões de anos-luz de distância, processando luz emitida poucas centenas de milhões de anos depois do Big Bang e permitindo um salto no conhecimento sobre a origem do Cosmo.

Basta lembrar que, antes do Hubble, ainda havia dúvida sobre a velocidade de expansão do Universo. Hoje conhecemos a aceleração precisa dessa expansão, atribuída a um campo energético desconhecido, batizado “energia escura”. Medimos a idade exata do Universo — 13,8 bilhões de anos. Também foi possível estudar em detalhes as manchas de Júpiter, as mudanças climáticas noutros planetas, confirmar a existência de buracos negros no centro das galáxias e até observar, em 2017, um objeto voador misterioso, até hoje não explicado, o Oumuamua.

As primeiras imagens do JWST, de nitidez e qualidade impressionantes, trouxeram o olhar mais distante já alcançado pela vista humana, para a luz de galáxias emitida há 13,1 bilhões de anos. A exemplo das vacinas contra a Covid-19 alcançadas em tempo recorde, são mais uma vitória da Ciência na luta para desbravar as fronteiras do conhecimento. Mais que isso, elas também são uma obra de arte. O retrato de um pedaço do céu do tamanho de um grão de areia, capaz de abrigar trilhões de galáxias, traz um recado profundo sobre a insignificância de todas as guerras, disputas políticas e vicissitudes terrenas que afligem a alma humana. O silêncio do Cosmo segue e seguirá indiferente a tudo isso — às vezes é preciso saber parar para ouvi-lo.

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