Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
É preciso dar um apoio social às
instituições de Justiça e aos políticos que querem proteger a democracia dos
ataques bolsonaristas
Todo o poder emana do povo, diz a
Constituição brasileira logo em seu início. Mas nem sempre os cidadãos, tomados
de forma fragmentada, são capazes de resistir a ações autoritárias de líderes
políticos e forças militares. A oposição e outros políticos eleitos podem
tentar resguardar o regime democrático, porém parte deles pode aderir ao
golpismo e inviabilizar a resistência política. Há ainda as instituições de
controle como instrumentos para limitar o poder dos governantes. Só que por
vezes elas sucumbem diante do populismo autoritário. Ao final, quando o próprio
presidente jura de morte a democracia, o último bastião da liberdade é a
sociedade civil organizada.
A democracia brasileira chegou ao seu limite quando o presidente Bolsonaro chamou embaixadores de outros países para deslegitimar o processo eleitoral, dizendo, no fundo, que como candidato à reeleição ele não necessariamente obedecerá às regras do jogo. Assim, ele avisou ao mundo que o voto poderá não ser a forma de definir o próximo governante do país. O sinal do golpe final contra o regime democrático foi dado.
O recado foi entendido pelos países democráticos presentes na fatídica reunião, que disseram duas coisas importantíssimas. Primeira, se o Brasil caminhar para algum tipo de autoritarismo, haverá rechaço internacional em todos os campos (militar, político, econômico etc.), de modo que passaremos de isolados a boicotados. Mas a segunda observação é tão importante quanto a inicial: cabe aos brasileiros definir o seu caminho e defender a sua democracia.
Até o momento, o ataque contínuo de
Bolsonaro à democracia tem sido barrado basicamente pelo STF e pelo TSE. Não
por acaso seus ministros têm sido constantemente xingados e ameaçados pelo
bolsonarismo. O presidente busca emparedar as cortes superiores do Judiciário
para evitar que elas tomem as decisões que deveriam tomar, inclusive impugnar
candidaturas que atacam a democracia. Em poucas palavras, o controle
institucional vindo da última instância da Justiça, central em qualquer país
democrático, está sob fogo cruzado e talvez não tenha como resistir sozinha ao
ataque populista do bolsonarismo
O Congresso Nacional poderia ser o guardião
contra um golpe bolsonarista, mas sua atuação recente revela tibieza e
dificuldade de abandonar as benesses do poder. O presidente do Senado responde
com um discurso bacharelesco, tentando se equilibrar em meio ao precipício. Já
Arthur Lira virou sócio do projeto de golpe autoritário. Aquela ideia de que o
Centrão era uma força moderadora da política brasileira foi agora sepultada. E,
infelizmente, mesmo com a reação de políticos e oposicionistas que têm a
coragem que o momento exige, a maioria dos parlamentares foi sequestrada pelo
orçamento secreto, com o qual fizeram um pacto como o de Mefistófeles de
Goethe: deram sua alma democrática em troca de bilhões de reais.
Haveria, ainda, a possibilidade de uma
reação dos governos subnacionais, especialmente os estados, que foram
fundamentais para evitar milhares de mortes durante a pandemia de covid-19, em
contraste com a gigantesca omissão do governo Bolsonaro. Mas a federação também
está sendo estilhaçada pelo bolsonarismo nos últimos meses, com a prestimosa
ajuda dos presidentes da Câmara e, estranhamente, do Senado, porque Rodrigo
Pacheco deveria, constitucionalmente, atuar pelo equilíbrio federativo. Os
projetos relativos ao ICMS mostraram como a União, alicerçada na aliança entre
bolsonaristas, Centrão e endinheirados com o orçamento secreto, pode atuar para
fraturar o pacto federativo.
A esperança maior, hoje, está na
reconstrução do conceito de sociedade civil organizada. Quando o Brasil viveu
por duas décadas numa ditadura civil-militar, eram grupos organizados da
sociedade que mobilizavam seus pares e outras lideranças para defender a
liberdade e atacar o regime autoritário. Era um tempo em que OAB, CNBB, SBPC,
entre outras, evitaram a morte de cidadãos, denunciaram internacionalmente a
tortura ocorrida nos porões brasileiros e engajaram, paulatinamente, milhões de
cidadãos para lutar pela democracia. Relembrando a fala final de Ulysses
Guimarães na promulgação da Constituição de 1988, foram os resistentes da
sociedade civil organizada - e todos nós, democratas - que vencerem ao final, e
não os facínoras que mataram Rubens Paiva.
Com a redemocratização, a defesa dos
direitos básicos se institucionalizou nas ações de partidos, governantes e
órgãos de Justiça. As eleições e as políticas públicas tornaram-se o palco do
desenvolvimento da democracia e da cidadania. Além disso, os temas relevantes
da sociedade ampliaram-se, e mais grupos e entidades sociais surgiram para
defender uma multiplicidade de causas e direitos. Esse saudável crescimento de
temáticas e da pluralidade de posições só foi possível porque a garantia da
democracia tinha deixado de ser um problema.
Bolsonaro consolidou um processo de ataque
à democracia que, na verdade, já havia começado em 2013. Nas jornadas de junho,
manifestantes gritavam na avenida Paulista uma das frases usadas pelos
fascistas na Marcha sobre Roma: “Sem partidos! Sem partidos!”. A experiência
daquelas enormes manifestações só levou à fragmentação e à polarização da
sociedade, gerando um jogo de manada, de likes e haters, com pouco compromisso
com as instituições democráticas. Começava assim um caminho que nos levou a um
governo com um projeto nitidamente autoritário, e as organizações da sociedade
civil não foram capazes de reagir ao enfraquecimento paulatino da democracia.
Chegou a hora de colocar novamente a
sociedade civil no centro da política brasileira por quatro razões. A primeira
é que só ela pode juntar lideranças de vários campos da vida social e com
diversas visões de mundo na defesa da democracia. Não serão a lógica difusa das
redes sociais nem a convocação de manifestantes de rua performáticos capazes de
mobilizar de forma politizada, com consciência democrática, uma miríade de
atores que podem dar um nome, uma história de vida, à defesa do regime
democrático.
Além disso, uma segunda razão torna
essencial a mobilização da sociedade civil: é preciso dar um apoio social às
instituições de Justiça e aos políticos que querem proteger a democracia dos
ataques bolsonaristas. Mas não é um apoio social qualquer: são pessoas
importantíssimas para a história recente do país, com grandes serviços
prestados à nação e à identidade nacional, ao contrário da irrelevância dos
apoiadores bolsonaristas. Quanto mais gente qualificada e de diversos espectros
ideológicos apoiarem a democracia, mais o bolsonarismo ficará isolado, fazendo
com que seu projeto de golpe seja cada vez mais ilegítimo e dependente de
extrema violência.
Uma terceira razão justifica apostar na
ação da sociedade civil para defender a democracia: a necessidade de angariar
apoio internacional. Foram as pressões de organizações internacionais e de
outros países que ajudaram a derrubar grande parte das ditaduras do século XX.
O caminho do isolamento e do boicote é bem provável se Bolsonaro construir o
caos nas eleições, mas é preciso evitar essa possibilidade, construindo desde
já alianças que permitam uma ação externa de apoio aos democratas brasileiros
na luta contra o autoritarismo bolsonarista.
Retomar a centralidade da sociedade civil,
por fim, é central para fortalecermos organizações que reúnam lideranças e
grupos representativos em torno da democracia e, ademais, que recuperem a ideia
de que podemos ter um futuro melhor, com projetos e debates qualificados. Num
primeiro plano, está sendo muito destacada a Carta às Brasileiras e aos
Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito, que congregou assinaturas
de figuras centrais do país, numa dimensão não alcançada desde o fim da
ditadura. Ela será lida e apresentada publicamente no dia 11 de agosto, em São
Paulo. Depois disso, o 7 de Setembro bolsonarista não será mais o mesmo.
Mas, antes desse grande marco mobilizador,
ocorrerão duas iniciativas fundamentais na próxima segunda-feira, dia 1º de
agosto. A primeira será um evento organizado pelo grupo Direitos Já/Fórum Pela
Democracia, criado em 2019 e que junta os grupos sociais mais diversos,
incluindo lideranças dos partidos que lutam contra o bolsonarismo. Intitulado
IX Ato do Direitos Já! Fórum Pela Democracia - Em Defesa da Justiça Eleitoral e
da Não Violência, o encontro será no Rio de Janeiro, no Clube de Engenharia.
No mesmo dia será lançado o documento Uma
Agenda Inadiável, produzido pelo grupo Derrubando Muros, composto por um grupo
apartidário cujo objetivo é recuperar o debate das políticas públicas
necessárias ao país, de uma forma plural e contra a lógica polarizadora. A
apresentação será feita pelo YouTube (youtu.be/Oo2_1PtCyP4). Obviamente que as
ideias ali expostas não são perfeitas, mas permitem ter um diálogo plural
lastreado em evidências e experiências de gestão, e não em mitologias,
negacionismo científico e mero oportunismo clientelista.
O Brasil só poderá ser reconstruído do
vendaval autoritário e desastroso do bolsonarismo se a sociedade civil for
guardiã da democracia e parteira de um debate plural de ideias. Caso contrário,
será difícil evitar o caos que Bolsonaro sonha para as eleições de 2022.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Um comentário:
Parabéns pelo blog!! Muito bom!!
Rafael Ramos
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