É
intuitivo supor que ambiguidades políticas de variadas dimensões respondem pela
atribuição ao nosso país da condição que a frase de Werneck comunica. Para
lembrar algumas em que esbarramos, ao visitarmos nossa história política, eis a
ambiguidade entre liberalismo e escravidão, entre monarquia e república, ordem
e progresso, autoritarismo e modernização, populismo e democracia.
Essa última ambiguidade, inaugurada no final da Era Vargas e difundida durante a democracia de 46 a 64, encontra reedição dramática, nos dias atuais, na campanha eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva e negação enfática na de Jair Bolsonaro. Populismo e democracia formam, nesse segundo caso, uma contradição em termos, como ocorreu nos tempos do general Médici (1969-1973), o tempo, por excelência, da disseminação, sem peias, de censura e tortura, durante o regime autoritário. Com o tempo da danação superado por volta de 1977 (salve as arcadas que emolduraram o largo caminho!) e o regime derrotado, em 1985, pelo êxito da transição democrática, fundou-se, então, o regime e a sociedade da Carta de 88, hoje sitiada e abalada por fricções e fantasmas.
Por
mais incômoda que seja a viagem de regresso por um túnel do tempo que a
campanha eleitoral nos está impondo, a ambiguidade não deixa de exibir um lado
virtuoso, que é ser o menor dos males, o que permite a continuidade de uma vida
em comum, com suas alegrias entre dores, conquistas entre azares. Mais uma vez
a ideia da conciliação é nossa valência, senão como abertura de horizontes, ao
menos como contenção de dores. O país não dá as costas à sua boa tradição de
preferir analgesia, fitoterapia e fisioterapia às consequências de uma cirurgia
invasiva no seu corpo original. É isso que Lula quer comunicar quando surge,
como sábio e sereno tio da pátria, em vídeos feitos para desarmar e prometer.
Nessa
terapêutica política de resgate de uma alma nacional apaziguada, a ambiguidade
comparece também nos próprios termos que a constituem. Se ambiguidade não
houvesse, desarmar e prometer poderiam fluir do ato inaugural de perdoar. Mas
se a alma de quem propõe conciliar o país admite relevar agravos que sofreu em
passado recente e declara recusar a trilha da vingança, tal aceno deriva de
concessão, não de gesto de perdão, a si mesmo e aos demais, por agravos
recíprocos. Privado desse ato inaugural, o unguento conciliador atua, mas tem
reduzido seu poder de promissão. Ouve-se Lula ambiguamente, como consolo, com
alívio, mas sem a esperança ambicionada pelo slogan da campanha. O ato de
criar, de propiciar o nascimento – condição que completa, no pensamento de
Hannah Arendt, a dignidade da política – depende de se cumprir todo o circuito
que começaria pelo perdão. Esse bem público não está disponível no momento. Mas
convém não desdenhar a ambiguidade que felizmente há.
Aceitar o que se tem, para o desjejum, o almoço e o jantar, não deve
desviar nossa consciência de riscos, nada pequenos, implicados numa aceitação
acrítica e num cultivo imoderado da ambiguidade benigna. Vou me ater a um
exemplo e, ao fazê-lo, pretendo, talvez presunçosamente, alertar quem usa
saltos altos e lentes cor-de-rosa a cada pesquisa divulgada. Vejo como erro
saudar a estabilidade das intenções de voto em Lula como se fosse avanço, assim
como exibir, como troféu antecipado, a mera ausência de uma reversão drástica de
números que tornasse a reeleição de Bolsonaro não só algo possível (como já
voltou a ser), mas até provável. A subestimação do conta-gotas pode ser fatal.
Ela nasce da desatenção para com a necessidade de garantir, ao campo da
democracia, o comando moral do processo eleitoral. Esse é um terreno que, se pisado
sem delicadeza, faz a virtude da ambiguidade dissipar-se em risco.
Há pouco mais de uma semana, no dia 11 de agosto, o ato de leitura, sob
as arcadas do Largo de São Francisco, da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros,
já ostentando quase um milhão de assinaturas (marca superada logo após o ato,
indicando não haver motivos para que a coleta se encerrasse ali), mostrava que
a sociedade civil achara o eixo em torno do qual a ampla unidade democrática se
forja. Com isso não se resolvia o embate eleitoral, mas se dava cobertura e um
sentido político a esse embate.
Uma aura de (quase) unanimidade formou-se nas interpretações positivas sobre
o significado daquele ato. Plural e histórico, foram essas as qualificações
mais frequentes. Estimulada por elas, a coluna que não chegou a ser escrita na
semana passada teria explorado várias possibilidades de desdobramento daquele
impulso agregador. Este articulista, embora não tenha escrito a coluna, faz
aqui uma tardia e desnecessária confissão, que poderia ocultar para escapar a
um flagrante de irrealismo, o que sempre é provável quando há tanta gente
desencantada ao redor, além dos implacáveis distópicos de plantão.
A imaginação teria pousado em inúmeros professores signatários daquela
carta sugerindo a seus alunos que a assinassem também; em advogados e juristas
fazendo o mesmo com seus clientes, assessores, funcionários e interlocutores; em
artistas que tão enfaticamente acolheram e assinaram a carta instalando, na entrada de seus
espetáculos, postos de coleta de assinaturas saídas do anonimato; em ativistas
organizados das várias cores e credos democráticos levando a carta a terminais
de transporte coletivo, a entradas de shoppings e ao comercio de rua, a feiras,
praias, parques e aonde mais a iniciativa cívica chegasse. Por fim, a
imaginação veria horários de propaganda eleitoral de candidaturas democráticas
nos quais a mobilização para a assinatura ainda mais popular da carta poderia
aparecer como breve vinheta comum, sem prejuízo de que, em cada programa, as
candidaturas comunicassem a seguir suas diferentes mensagens, cuja diversidade
sustenta o embate numa eleição politicamente saudável. Houvesse esse circuito
após o ato, o milhão de assinaturas do dia 11 poderia ser o primeiro de muitos.
O salto seria um documento político servir de liame entre a sociedade civil e o
cidadão comum.
É desconcertante verificar, apenas uma semana depois, o silêncio
obsequioso que se instalou em torno daquele processo promissor de mobilização
cívica, tratado, na prática, como mero evento, ainda que marcante. Esse choque
abrupto de silêncio começou com a iniciativa dos próprios organizadores de
paralisarem o mecanismo eletrônico da coleta mediante a vaga justificativa de
que a campanha eleitoral oficial começou. E daí? E além da justificativa, a
promessa, ainda mais vaga, de que se voltará ao movimento de defesa da
democracia “se necessário”. Qual a indicação de que, por ora, deixou se ser? Equívoco
é o que parece ser essa autocontenção da sociedade civil, assim como a
distância que o conjunto das forças políticas tomou de possíveis desdobramentos
daquele ato. Incluindo partidos e candidaturas que têm feito pregação contínua
sobre a necessidade de busca de convergências ao centro.
A descontinuidade desconcerta no
sentido de surpreender (negativamente) e no de desmobilizar o que deu trabalho
para juntar. Porém, mais sério que o da descontinuidade é o efeito de
desconstrução desse eixo agregador, provocado pela ambiguidade presente em passos
dados pela campanha mais relevante e em movimentações feitas no seu entorno. Na
contramão (ou não?) dos esforços empreendidos na construção da imagem positiva de
tio da pátria, o pluralismo da Carta e do ato vai sendo tratado, ainda que
implicitamente, em chave populista, como pecado elitista original e o sentido
do adjetivo histórico, dirigido a ambos, é remetê-los, desde já, ao passado. Listo,
a seguir, algumas evidências do que digo:
Na semana seguinte à Carta às brasileiras e aos brasileiros, iniciativa ampla
nascida no próprio meio universitário, a esquerda universitária produziu uma “Carta de
Ex-Reitores e Ex-Reitoras de Universidades Federais pela Democracia e em Apoio
à eleição do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva”. É um movimento que estreita o original. O recado político não deixa
dúvidas: ir ao centro não significa abrir mão de uma hegemonia em prol do
pluralismo. Desde já demarcado está o lugar de quem, por suposto, representa o
espaço universitário. Ali os liberais (os da casa e os dos partidos) são
visitas. Para evitar ambiguidade eleitoral, incide-se em perigosa ambiguidade
quanto à unidade democrática.
No mesmo contexto, Lula, em campanha, foi à USP, instituição líder do movimento
da sociedade civil. Ladeado por Fernando Haddad e figuras tradicionais do lulopetismo
acadêmico, adotou uma dada noção de debate eleitoral: não há tempo a perder com
concorrentes inexpressivos, seja em debates pela TV ou no ambiente
universitário. Seu alvo é o rival que ameaça a democracia. Daí, em tom de
blague, desafia-o a debater téte a téte na USP. Bem poderia receber de
volta, como virtual resposta do capitão, que pode ficar com a “sua” USP, que ele,
Bolsonaro, está bem no seu cercado, com o “seu” Exército.
É ainda sob a mesma chave populista que se pode compreender um novo
texto que circula há dois dias, tentando ocupar o lugar daquele que Bolsonaro
chamou de cartinha, abreviando-lhe, para regozijo daquele, a vida política útil
para arquivá-la em lugar de honra na História. O título “Carta do povo”, assaz enganoso,
já expressa, de fato, um contraste com a “Carta às brasileiras e aos brasileiros”,
lida e saudada, sob as arcadas, por personalidades e representantes do amplo
arco-íris da sociedade civil brasileira. Ali o povo, conjunto de cidadãos e
cidadãs não previamente organizados, é destinatário, ainda que nada impedisse
que parte desses milhões de indivíduos também se tornasse signatária, pelo
exercício de cidadania mais ativa do que aquela, já em si efetiva, que se
exerce ao votar em liberdade.
No título do texto alternativo - que se difunde nos nichos da frente de
esquerda em aliança com o ativismo digital de André Janones - o povo é um
coletivo magicamente convertido em remetente pelas artes da retórica populista.
Argumentarão, decerto, que não são
iniciativas excludentes e, de fato, não são. Até porque, graças às instituições
democráticas e pluralistas que temos, a ninguém é dado o poder de promover a
excludência. Portanto, não dirijo à carta alternativa um juízo de ilegitimidade
e sim o de estreiteza política. E sua leitura mostra que essa estreiteza não está
no que contém, mas no que omite.
Dos seus dezoito curtos parágrafos - escritos com boa técnica
comunicacional de quem trafega tanto nas redes contemporâneas quanto na
tradição dos panfletos; e cujo conteúdo é certo conceito de democracia traduzido
por escribas presuntivamente autorizados pelo soberano coletivo - só um se refere,
genericamente, a instituições políticas capazes de distinguir uma democracia de
uma ditadura. Cito o texto:
“Democracia
é termos o direito do voto, do livre pensar, de professar nossa fé e nosso
credo. É vivermos livres de ameaças autoritárias e do medo da fome e do
desemprego” (“Carta do Povo”).
Cumprido esse
protocolo (sem faltar, mesmo aí, o arremate da substância social, sem a qual a política seria, na visão dos escribas, um nada), os
demais parágrafos desdobram em pormenores o social que se acha com menos, mas
não menores letras, na “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros”, que também
cito:
“Nossa
democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito. Vivemos em
país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos
essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a
caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma
sustentável. O Estado apresenta-se ineficiente diante dos seus inúmeros
desafios. Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de
raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de ser atendidos com a
devida plenitude”. (Carta às brasileiras e aos brasileiros”)
Voltando à
“Carta do povo”, o mais a notar é a ausência ruidosa de qualquer menção ao
estado democrático de direito, emanação da nossa Constituição, que foi o eixo
em torno do qual se forjou a unidade de 11 de agosto, levando Bolsonaro a se
isolar em desacordos, muxoxos e impropérios. Em decorrência dessa omissão
básica, seguem outras especificas, de importância crucial, como a defesa do
papel do Judiciário, do sistema eleitoral, das urnas eletrônicas, da liberdade
de imprensa e por aí vai. Sobre nada disso se diz palavra e como o autor
suposto é o povo, deixa-se implícito que, para ele, nada dessas formalidades
(pauta das “elites”?) importa e sim a verdadeira “substância” que garante o
caráter “popular” da carta. Desconectando forma e substância abre-se
flanco aos arautos da democracia iliberal
Além do
mais, a idealização do povo como incapaz de ir além de impulsos primários denuncia
um elitismo de fundo que não ousa dizer seu nome. Ele aproxima o esquerdismo do
populismo para formar uma coalizão pela limitação dos cidadãos à condição de
massa, ou de clientes. Termina, no limite, naturalizando, ou dando espaço, para
que a campanha eleitoral prometa pão a partir de um circo.
Aí está o cerne da
ambiguidade entre populismo e democracia que, há 60 ou 70 anos, foi, de algum
modo, positiva. Como no dizer de Nelson Sampaio, “o jardim de infância da cidadania”. A reincidência nessa ambiguidade, hoje,
oferece ao país um script de Benjamin Button e se torna ainda mais
ilusória e perigosa porque, no itinerário desse regresso, o outro páthos
iliberal que sai à luz, pela direita, tentando vestir o passado autoritário com
vestes milicianas, pode ser uma parada obrigatória nesse descaminho.
Do ponto de
vista da visão de democracia como um gerúndio progressivo, a ambígua veiculação
de Lula como um sereno e agregador tio da pátria com olhos postos num passado que
considera idílico pode ser aceita como uma forma de evitar o pior. Mas a condição
mínima é esse movimento regressivo parar num porto democrático antes da estação autoritária que
pode devorar os viajantes. A sugestão do Largo de São Francisco é que esse
porto seja o de 1988, que foi construído com o cimento fabricado a partir de 1977.
O contraponto populista ao texto do Largo é uma contraproposta?
A resposta à
pergunta acima indicará o que a principal candidatura do campo democrático
pensa a respeito de qual deve ser o comando moral da campanha eleitoral que se
intensifica. Até onde posso enxergar, se o comando moral sair das mãos do campo
do estado democrático de direito para seguir no rumo de um populismo do bem, ele
tende a passar, na verdade, às mãos do adversário comum. Ideologia, guerra
santa, violência política, demagogia de pão e circo são facetas de uma mesma
cilada.
A
ambiguidade é método político virtuoso, um saber prático para refratar esses
perigos com prudência e habilidade, sem voluntarismo ou doutrina. Mas se torna
o próprio perigo se for, ela mesma, um disfarce que congela convicções. Crenças
como, por exemplo, “conciliação é inimiga de mudanças”, “meu adversário é o
demônio”, “vale tudo contra o fascismo”, “instituições são coisa de elite”, “política
não enche barriga” são ambiguidades perigosas em campanhas democráticas.
Espalham perversidade e autoengano, alimentando a tese de que é possível vencer
o adversário antidemocrático adotando suas premissas. Não é. O que se logra, no
máximo, é trocar de posição com ele em incessante batalha frontal.
Esses
dilemas de ordem moral estão no coração da luta democrática atual. Vale pensar
neles para achar um eixo político prático. Por isso será muito bem vindo cada
fiapo de debate que puder ocorrer nessa campanha eleitoral. Eles são farol e fermento
dos entendimentos entre democratas que ainda precisarão ser feitos no sentido
ultra dilemático dos perdões recíprocos que cortam na própria carne. E o serão
no tempo da política real, que não pode ser o tempo largo de especulações
metafisicas nem o tempo sumário de arrastões. Quem não tiver tempo para pensar nisso,
está antecipadamente derrotado.
* Cientista político
e professor da UFBa
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