Folha de S. Paulo
Incluir, cuidar e punir são ordens
jurídicas, não revanche ideológica
Palavras nunca foram só palavras, mas
também ação concreta. Proferidas por autoridades, ainda mais. Palavras ditas
por presidentes da República geram efeitos em corpos e mentes individuais e no
patrimônio coletivo: fazem subir ou descer desmatamento, violência doméstica,
ataque homofóbico, armamento ilegal, invasão de terra indígena, uso de máscara
e vacina, sufocamento por Covid, indicador econômico.
Quando Bolsonaro presidente
falava, periferias simbólicas e territoriais do país sentiam na pele. Seus
cânticos do porão, entoados por quatro anos, acentuaram sofrimento, adoecimento
e morte nessas periferias e nas UTIs. O assédio, a violência e a bala perdida
com alvo certo, também. Não foi coincidência, nem mero discurso.
Lula, quando fala, não faz os pilotos da Faria Lima ou comentaristas de jornal temerem pela vida. Eles não levam tiro nem fatiam a merenda. Mas estrilam verbosamente. Cada vírgula lulista se sujeita a escrutínio crítico, psicográfico, ético e estético. A delinquência verbal bolsonarista passa como indelicadeza na sala de jantar.
Perdão pela generalização. Difícil, porém,
haver outra tão eficaz quanto esta. O mundo é mais complexo e tal, mas a
epiderme do mercado e seus porta-vozes, não. Reagem como um algoritmo. Exceções
mais arejadas confirmam a regra.
Em seus dois
discursos de posse, Lula usou palavras tão elementares quanto necessárias.
Qualificou o governo anterior como "negacionista, obscurantista e
insensível à vida", "projeto autoritário de poder". A
"grande vitoriosa" foi a democracia.
Defendeu a política como "melhor
caminho para o diálogo", "para a construção pacífica de
consensos", para "promover o crescimento sustentável e em benefício
de todos". "Vou governar não apenas para quem votou em mim",
"olhando para o nosso luminoso futuro em comum", pois "não
existem dois brasis", assegurou. Palavras nunca escutadas no repertório do
ex-presidente.
Augusto Aras,
maior agente da irresponsabilização pelo moriticídio bolsonarista, debaixo de
vaia e com cara de paisagem geral da república, teve de ouvir que "não podemos
admitir terra sem lei" e "responsabilidades hão de ser
apuradas."
Lula garantiu: "Não carregamos ânimo
de revanche, mas vamos garantir o primado da lei. Quem errou responderá por
seus erros, com direito amplo de defesa, dentro do devido processo legal".
Houve quem escutou "revanchismo"
e gritou "caça às bruxas". Ou quem concluiu que "Lula optou pela
polarização". Duas coisas iniciais a dizer: defender apuração e
responsabilização é dever constitucional, seu contrário é corrupção; a tarefa
cabe, sobretudo, ao sistema de Justiça.
Contudo, o discurso suscitou, sim,
polarização. Lembrou do contraste entre a "parcela da população que tudo
tem" e a "multidão a quem tudo falta"; a "fila na porta dos
açougues em busca de ossos" e "filas para a compra de jatinhos";
os "5% mais ricos" com mesma fatia de renda que "os demais
95%"; ou os "seis bilionários brasileiros" com patrimônio
equivalente aos "100 milhões mais pobres".
Assumiu "compromisso de cuidar de
todos" e pediu uma "frente ampla contra a desigualdade", um
"grande mutirão". Não há possibilidade de "união e
reconstrução" do país sem essa polarização, que está em nosso código
genético colonial.
Antes de, na ânsia pelo clichê, dizer que a
fala induz o mesmo "nós contra eles", note a diferença. Não é teórica
ou retórica, é muito prática.
O "eles" de Bolsonaro mira
sujeitos concretos e individualizáveis: o negro pesado em arrobas, a mulher que
deve "ganhar menos porque engravida", o gay "por falta de
porrada", o indígena que está vivo por falha da cavalaria brasileira, a
torturada que "se vitimiza", a jornalista que "dá um furo",
o petista que merece ser fuzilado e ir "pra ponta da praia".
O "eles" antagonizado pela fala
de Lula evoca sujeito abstrato, irredutível a identidade fixa. São os que
querem "oprimir o vulnerável, massacrar o oponente e impor a lei do mais
forte". Pertencer ao "nós", nesse caso, é opção moral e
política, não cor de pele.
De um lado, há polarização pela exclusão e
eliminação do diferente. De outro, pela via da inclusão e do respeito. Chame
isso de populismo, se quiser, mas são populismos opostos. Apagamento do outro
não se confunde com contestação legítima da exclusão. Esta tem lastro moral e
jurídico, aquele é só força bruta.
Lula pode vir a trair seu compromisso, mas
não se leia nas suas palavras o que elas não dizem. A polarização que elas
incitam, por dever jurídico, também estava presente no discurso do ministro
Silvio Almeida: "vocês
existem e são pessoas valiosas para nós". Todos os tratados de
direitos humanos e declarações de direitos constitucionais cabem nesse refrão.
*Professor de direito constitucional da
USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa,
Ciência e Liberdade - SBPC
6 comentários:
Coluna magnífica! Parabéns ao autor e ao blog que nos disponibiliza trabalho com tanta qualidade!
"Vamos garantir o primado da lei. Quem errou responderá por seus erros, com direito amplo de defesa, dentro do devido processo legal".
Anistia a Bolsonaro:
NUNCA!
As ações e queixa-crime do Engavetador Bolsonariano e do Geléia Suprema 10% de Bolsonarocontra o Autor Conrado Hübner Mendes são verdadeiras medalhas a homenagear a qualidade dos seus textos.
Parabéns, Conrado!
Com todo o respeito que o Emérito Professor merece. Vamos ponderar. Pessoas como o Sr. Jânio de Freitas, Élio Gaspari, pessoas pelas quais todos nós admiramos, suplico-lhes os vossos talentos para ajudarem a construir uma identidade para o Brasil e não ficar a passar a mão em cabeça de infratores. lembrem-se do Mensalão, do Petrolão, mais recentemente: Lula enxugou as lágrimas com a mão dos quatro dedos e produziu uma das imagens mais impactantes da posse. Horas antes, porém, o presidente havia passado a noite de réveillon com o dono de um desses jatinhos, o dono da QSaúde, José Seripieri Jr, seu caroneiro para a COP27, (coluna de Maria Cristina Fernandes). Professor jamais esqueceremos as atrocidades do Genocida Bolsonaro...prendam-no, mas ponderemos. O Brasil não merece isso.
Puxa-saco!!!!
Conrado Mendes sempre acertando na mosca.
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