sábado, 9 de dezembro de 2023

Pablo Ortellado - Polarização ‘calcificada’

O Globo

Entre 2010 e 2022, a variação do voto no PT nos municípios não oscila mais que quatro pontos percentuais

Acaba de sair pela editora HarperCollins o livro “Biografia do abismo”, escrito pelo cientista político Felipe Nunes e pelo jornalista Thomas Traumann. O livro é a mais importante contribuição para os estudos sobre polarização política no Brasil e leitura obrigatória para quem quer pensar os desafios políticos atuais. Seu principal trunfo está em fazer uso de abundante evidência empírica produzida entre 2021 e 2022 em 27 rodadas de pesquisas nacionais da consultoria Quaest, cofundada por Nunes.

Polarização política pode significar pelo menos três coisas diferentes. No passado, o conceito era quase exclusivamente usado para se referir à concentração dos votos em dois grupos — como nas situações em que, num sistema político com muitos partidos, o voto se concentrava em apenas dois. Era apenas a polarização do voto. No final dos anos 1990 e no início dos anos 2000, o termo passou também a ser usado para se referir à ampliação da divergência de opinião na sociedade civil, situação em que o apoio ou a rejeição a certas políticas vai afastando os cidadãos. Essa é a polarização ideológica.

Por fim, nos últimos anos, consagrou-se um terceiro sentido do conceito, em referência à hostilidade entre quem adota identidades políticas adversárias — o desgosto que conservadores e progressistas ou bolsonaristas e lulistas sentem um pelo outro. Essa é a polarização afetiva. O livro traz muitas evidências de que passamos por um período de polarização política em todos os três sentidos consagrados.

Nunes e Traumann mostram que, apesar de o padrão de voto para presidente no Brasil parecer, à primeira vista, oscilante e confuso, ele está bem estruturado e, pelo menos desde 2006, consolidado. Quando olhamos para os partidos políticos, o voto muda a cada eleição presidencial. Se entendermos, porém, que o PT organiza o sistema político-partidário e separarmos os votos entre os dados ao PT e a antagonistas do PT, veremos que há muito pouca variação nos estados e nos municípios entre os ciclos eleitorais. É impressionante. Entre 2010 e 2022, a variação do voto no PT nos municípios não oscila mais que quatro pontos percentuais entre uma eleição e outra e, na maioria dos intervalos, é de apenas dois pontos. Como apontam os autores, daria para prever quem venceria as eleições de 2022 em cada município, com alguma certeza, apenas olhando para os dados de 2018, 2014 e 2010. Há, sem sombra de dúvida, uma polarização bem consolidada do voto entre PT e anti-PT.

O livro também demonstra que, quando comparamos a opinião dos eleitores de Bolsonaro e de Lula, o contraste é grande, sobretudo nos temas de costumes. Nos Estados Unidos, esse contraste grande só aparece quando se olha para o subgrupo dos eleitores identificados com os partidos (republicanos e democratas). Nunes e Traumann mostram, porém, contrastes expressivos na grande massa de eleitores brasileiros. Lulistas e bolsonaristas diferem bastante no apoio à união entre pessoas do mesmo sexo (80% e 42%, respectivamente), à pena de morte (39% e 60%) e ao porte de armas (17% e 58%), entre outros temas morais. O contraste é menor ou inexistente em temas econômicos como papel do Estado na economia, Previdência ou privatizações. Há polarização ideológica de massa, e ela está concentrada nos temas das guerras culturais.

Por fim, e muito mais preocupante, o livro apresenta evidências desconcertantes de que enfrentamos um período de acirrada polarização afetiva, que ameaça a convivência democrática. Uma pergunta investiga se o entrevistado ficaria feliz ou infeliz se o filho ou a filha se casasse com um integrante do grupo adversário (medida de polarização afetiva consagrada nos estudos eleitorais nos Estados Unidos): 43% dos lulistas e 28% dos bolsonaristas responderam que ficariam infelizes se o filho ou filha se casasse com alguém do outro grupo. Há outras evidências: 37% dos eleitores de Lula e 34% dos eleitores de Bolsonaro acham que votar no candidato adversário é inaceitável; 15% dos bolsonaristas e 16% dos lulistas deixariam de ouvir música de um cantor ou cantora que deu apoio ao outro candidato. No total, um em cada seis brasileiros (17%) reconhece ter rompido relações familiares ou de amizade em razão da política. É um nível incrivelmente alto de intolerância.

Fiquei muito impressionado com as evidências que o livro apresenta da intensidade da polarização política no Brasil. Mas não fui completamente convencido pelas explicações que traz para ela.

Os autores adotam a visão de alguns cientistas políticos americanos, segundo a qual a polarização atual é fruto do enrijecimento de identidades partidárias que se “calcificaram”. No estágio atual da polarização, argumentam, essa identidade partidária (no caso brasileiro, identidade partidária e antipartidária, de petistas e antipetistas) tem tamanha força que a aliança com o grupo político não é abalada por evidências contrárias, gera intolerância política e nos empurra para relações sociais politicamente homogêneas.

A valer essa explicação, a origem do problema é eleitoral e “transbordou” para as relações sociais. Permaneço cético com relação à leitura que parte da política eleitoral e contamina a sociedade. Há fenômenos como as guerras culturais que nasceram na sociedade civil e só depois se ligaram às dinâmicas eleitorais. Seja como for, é um livro que nos faz refletir.

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