sábado, 9 de dezembro de 2023

Cláudio Carraly* - A falsa dicotomia ideológica entre liberdade e igualdade

No cenário tumultuado do século XX, a dicotomia entre capitalismo e socialismo emergiu como uma força motriz que moldou não apenas sistemas econômicos, mas também definições fundamentais de liberdade e igualdade, enquanto os defensores do capitalismo argumentavam fervorosamente pela liberdade individual e pela economia de mercado, os socialistas buscavam uma redistribuição mais igualitária da riqueza produzida. No cerne da defesa capitalista estava a premissa da liberdade individual. Pensadores como Friedrich Hayek argumentavam que a liberdade individual era intrinsecamente ligada à economia de mercado, proporcionando escolhas e oportunidades para todos, para Hayek, a intervenção do estatal no mercado comprometeria a liberdade, resultando em um cam inho perigoso em direção à tirania do Estado.

A defesa capitalista pela liberdade tem suas raízes profundas na filosofia liberal do século XVIII, pensadores como Adam Smith e John Locke fundamentaram a ideia de que a liberdade individual é essencial para o progresso econômico e social, segundo eles, a mão invisível do mercado, guiada pela busca do interesse próprio, resultaria em benefícios coletivos. A Revolução Industrial ampliou as divisões econômicas e sociais, mas também estimulou o crescimento econômico, defensores do capitalismo, argumentaram que a intervenção mínima do Estado era crucial para preservar a economia, pois qualquer interferência representaria uma ameaça à autonomia individual. Entretanto, a realidade social testemunhou muitos equívocos dessa visão.

O capitalismo, em seu avanço, muitas vezes resultou em disparidades extremas de riqueza e poder, os defensores da liberdade individual eram desafiados a reconciliar a busca do interesse próprio com a necessidade de limitar excessos e garantir uma distribuição mais equitativa dos benefícios, garantindo um mínimo de estabilidade social. Na década de 1980, o governo de Margaret Thatcher no Reino Unido implementou políticas neoliberais, desregulamentando mercados e promovendo de forma extrema a chamada liberdade econômica, essas ações, embora tenham impulsionado o crescimento econômico, também exacerbaram e aprofundaram as desigualdades sociais, aumentando o abismo entre pobres e ricos no Reino Unido.

Em contraste, os socialistas, influenciados por pensadores como Friedrich Engels e Karl Marx, viam a igualdade como a chave para uma sociedade mais justa. A propriedade coletiva dos meios de produção era vista como a ferramenta para eliminar disparidades econômicas, para os socialistas, a liberdade individual muitas vezes era vista como ilusória em um sistema que perpetuava desigualdades, o direito coletivo estava acima do individual, ao longo do século XX, várias nações experimentaram formas diversas de socialismo, gerando uma resposta ao mundo sobre as desigualdade econômica e liberdade desassistida do mercado. Também a social-democracia europeia buscou uma solução a esse impasse, numa tentativa de síntese política, reconhecendo a importância do mercado, mas também defendendo um papel ativo do Estado na promoção da igualdade social, essa busca confrontou frequentemente a defesa da liberdade individual, o dilema central residia em como equilibrar a igualdade econômica sem comprometer as liberdades individuais, isso se reflete em debates sobre impostos progressivos, programas sociais e regulações estatais.

Ocorre que, tanto as perspectivas socialistas quanto capitalistas, ancoradas nesse pseudo-dilema entre igualdade e liberdade, estavam equivocadas, os direitos fundamentais da humanidade apresentam como desenho basilar que todos esses são indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes, sendo insuficiente respeitar alguns desses direitos e outros não, portanto a premissa de hipertrofia da liberdade sobre a igualdade e vice-versa estão erradas em sua gênese. A perspectiva consolidada na Declaração Universal, destaca essa indivisibilidade, a liberdade e a igualdade são vistas como interligadas, desafiando a noção criada de que uma deve estar em oposição a outra, a busca por uma sociedade que harmonize liberdade e igualdade, parece simples, mas, na verdade, enfr enta desafios práticos.

As garantias dos direitos civis muitas vezes entram em conflito com as estruturas econômicas existentes, equilibrar a autonomia individual com a responsabilidade coletiva continua sendo um desafio complexo. Inúmeros foram os países que tentaram conciliar esses princípios, como os modelos escandinavos, indicando que é possível buscar altos padrões de vida e igualdade, mas não sem enfrentar debates constantes sobre os limites da intervenção estatal sobre a vida das pessoas. O movimento pela garantia dos direitos civis nos Estados Unidos ilustra como a luta pela igualdade racial estava intrinsecamente ligada à chamada busca pela liberdade, porém, Martin Luther King Jr. demonstrou que a liberdade individual só seria verdadeiramente alcançada quando o c oletivo dos cidadãos tivesse igualdade de oportunidades.

Em um mundo em constante evolução, a busca por um equilíbrio entre liberdade e igualdade continua a desafiar sociedades e líderes, destacando a importância de considerar ambos os princípios na busca por um futuro mais justo e humano. Essa perspectiva surge como um farol, apontando para a necessidade de encontrar um balanço entre esses princípios aparentemente antagônicos, a história revela que a resposta não reside em extremos, mas na busca contínua por sistemas que reconheçam a indivisibilidade e interdependência de todos os direitos, todos! Sejam esses, direitos econômicos, sociais, culturais, políticos, religiosos, sexuais, dentre tantos, assegurando que toda humanidade tenha oportunidade de viver vidas dignas e plenas. Como vimos, a liberdade e a igualdade não são mutuamente exclusivas, reconhecendo que a liberdade só pode ser plenamente realizada em uma sociedade profundamente justa e igualitária, e essa não prosperará sem um sentimento profundo de liberdade.

*Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

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