sábado, 7 de setembro de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo - Senhor feudal

CartaCapital

Musk é um suserano das plataformas de negociação digital

Conhecido e reconhecido economista grego, Yanis Varoufakis escolheu Elon Musk como protagonista maior do sistema tecnofeudal. “Se eu tivesse que escolher uma pessoa para ilustrar o tecnofeudalismo, tanto a palavra quanto o conceito para entender nossa situação coletiva, apontaria Elon Musk. Brilhante e deficiente, combina raros talentos de engenharia com ridículas demonstrações públicas de ostentação.”

Diz Varoufakis que a compra do ­Twitter por Musk foi considerada por muitos comentaristas apenas um episódio de mais um pirralho rico em busca de um brinquedo. “Mas havia uma lógica em sua compra do Twitter, uma lógica tecnofeudal que elucida muito mais do que a mentalidade de Musk.”

O economista arrisca seus neurônios para definir as transformações que levaram o capitalismo a desaguar no regime tecnofeudal. Suas peripécias concei­tuais apontam a substituição dos mercados por plataformas de negociação digital. Elas parecem, mas não são mercados. Essas plataformas são semelhantes aos feudos. Assim, o lucro, motor do capitalismo, foi substituído por sua predecessora feudal, a renda. Especificamente, é uma forma de aluguel que deve ser pago pelo acesso a essas plataformas e à nuvem de forma mais ampla. Como resultado, o poder real hoje não reside nos proprietários do capital tradicional, como máquinas, edifícios, redes ferroviárias e telefônicas, robôs industriais. Eles continuam a extrair lucros dos trabalhadores, do trabalho assalariado, mas não estão no comando como antes. Eles se tornaram vassalos em relação a uma nova classe de senhores feudais, os proprietários do capital da nuvem. Quanto às gentes do povaréu, voltaram ao status feudal de servos, alimentando a riqueza e o poder da nova classe dominante.

No Fórum Econômico Mundial de 2018 em Davos, o bilionário George ­Soros fez uma acusação implacável contra o poder das plataformas: os monopólios da era da internet, ao mesmo tempo que fornecem serviços cruciais de interesse geral, impedem a inovação, o bom funcionamento dos mercados e constituem uma ameaça às liberdades individuais e à democracia. Na opinião de ­Soros, seria inevitável o surgimento de novas regulamentações e novas regras fiscais para cuidar dessa situação perigosa.

No livro Phenomenology of The End, Franco Bifo Berardi desvenda as transformações geradas pela Economia das Plataformas: “A economia territorial da burguesia estava ancorada na dureza material do ferro e do aço, já em nossa era a economia está baseada no caleidoscópio da engrenagem semiótica à margem dos territórios: as mercadorias que circulam no espaço econômico são signos, cifras, imagens, projeções e expectativas. A especulação e o espetáculo se misturam na natureza intrinsecamente inflacionária e metafórica da linguagem”.

O lucro, motor do capitalismo, tem sido substituído por sua predecessora medieval, a renda

Berardi avalia as consequências desse processo para os trabalhadores das plataformas: “O capital deixou de alugar a força de trabalho das pessoas, mas compra ‘pacotes de tempo’, separados de seus proprietários ocasionais e intercambiáveis. O tempo despersonalizado tornou-se o agente real do processo de valorização e o tempo despersonalizado não tem direitos, nem demandas. Apenas deve estar disponível ou indisponível, mas essa alternativa é meramente teórica porque o corpo físico, a despeito de desconsiderado juridicamente, ainda tem que se alimentar e pagar aluguel”.

Hoje, as plataformas invadem todos os espaços, outrora ocupados pelo comércio, pela finança, pelos serviços, pela publicidade e pela produção. O capitalismo das plataformas transforma a possibilidade do tempo livre na ampliação das horas trabalhadas, na intensificação do trabalho, na precarização e empobrecimento do óleo queimado que sobrevive na bolha cada vez mais inflada dos trabalhadores em tempo parcial.

As empresas de plataforma têm um papel cada vez mais importante nas economias contemporâneas. Essas empresas se ocupam, sobretudo, do controle dos corações e das mentes. Berardi descreve a “automação psíquica” que contamina os indivíduos na sociedade contemporânea. “A sociedade de massa envolve os ­indivíduos nas cadeias automáticas do comportamento, manipuladas por dispositivos técnico-linguísticos. A automação do comportamento de muitos indivíduos afetados e concatenados por interfaces técnico-linguísticas resulta nos efeitos manada. O homem é um animal que molda um ambiente que, por sua vez, molda seu próprio cérebro. O efeito manada é, portanto, o resultado da transformação humana do ambiente tecnológico, o que conduz à automação dos processos mentais.”

Na “automação psíquica”, os processos conscientes são substituídos por reações imediatas, simplificadoras e simplistas, quase sempre grosseiras, corpóreas. Nesses soluços de presunção, a consciência inteligente, o pensamento e os próprios sentimentos desempenham um papel modesto. Convencidos da universalidade do seu particularismo, os indivíduos mutilados executam os processos descritos por Franz Neumann em Behemoth, seu livro clássico sobre o nazismo: “Aquilo contra o que os ­indivíduos nada podem e que os nega é aquilo em que se convertem”.

O tecnofeudalismo das plataformas acentua duas tendências inerentes às economias contemporâneas: a aceleração do tempo e o encolhimento do espaço. Esmagados pelo bombardeio de informações anônimas que os aprisiona no éter das redes sociais, os humanos habitantes dos espaços concretos buscam refúgio na enganosa segurança das crenças mais simples e simplórias. Na trágica “automação psíquica” dos indivíduos, os processos conscientes são substituídos por reações imediatas, simplificadoras e simplistas, quase sempre fulminantes e esféricas em sua grosseria. Nesses soluços de presunção opinativa, a consciência inteligente, o pensamento e os próprios sentimentos desempenham um papel modesto.

Em seu livro Filosofia e Tecnologia, Roberto Finelli adverte que “as novas tecnologias podem trans-humanizar as formas de controle. Ao invés de abrir e facilitar espaços da democracia e da discussão dialógica, parecem trancá-los e forçá-los sob a ditadura de automatismos que, a partir de sua natureza ­matemático-computacional, pretendem garantir a objetividade da decisão, bem como a aceleração e a determinação do comportamento”.

Publicado na edição n° 1327 de CartaCapital, em 11 de setembro de 2024.

 

Um comentário:

Daniel disse...

Muito bom, profunda análise das consequências sociais e econômicas das plataformas, muito além dos seus usos e benefícios mais (re)conhecidos. Musk está muito longe de ser mero defensor da liberdade de expressão, como ele quer ser visto (e para o que direciona seu marketing pessoal muito bem planejado) e como os bolsonaristas o supõem e o promovem.