O Estado de S. Paulo
No caso das Emendas Pix, o
STF abre mão da função precípua de guardião da Carta ao desistir de declarar a
inconstitucionalidade de norma inconstitucional
A Constituição federal cria
um sistema escalonado de leis por via das quais o governo estrutura a alocação
de recursos para a execução de plano de ação. Assim, conforme os artigos 165 e
seguintes da Constituição, no topo do sistema está o Plano Plurianual, por meio
do qual se estabelecem as diretrizes e os objetivos da administração, de forma
regionalizada. Segue-se a Lei de Diretrizes Orçamentárias, fixando prioridades,
em consonância com a trajetória sustentável da dívida pública e orientando a
elaboração da Lei Orçamentária Anual, que deve ser compatível com o Plano
Plurianual.
A fragilização do Poder
Executivo em 2015 levou à edição da Emenda Constitucional n.º 86, estatuindo
emendas individuais ao Orçamento, dotadas de execução obrigatória, conforme o §
11 do art. 166 da Constituição. Pela Emenda Constitucional n.º 100 de 2019,
criavam-se também, como obrigatórias, as emendas de iniciativa de bancada de
parlamentares de um Estado (§ 12 do art. 166 da Constituição).
O Legislativo apropriava-se de parcela do Orçamento, instalando governo paralelo com as emendas de comissões permanentes de ambas as Casas e as emendas do relator. Estas últimas, decorrentes da Lei n.º 13.898/19, de iniciativa de Bolsonaro, consistem em emendas do relator-geral que promovam acréscimo em programações constantes do projeto orçamentário ou inclusão de novas programações.
Como se vê, as emendas do
relator não se limitavam a corrigir omissões, mas promoviam acréscimos, sem
transparência e compatibilidade com a programação da ação administrativa,
alcançando em 2022 mais de R$ 16 bilhões, atendendo a interesses de parlamentares
em combinação com o relator, com ofensa aos princípios da publicidade e da
moralidade e subvertendo a lógica do sistema de repartição dos recursos
orçamentários, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) em dezembro de
2022.
Em suma, fatia considerável
do orçamento discricionário, gerida pelos ministérios, passou para o
Parlamento: em 2019, as emendas parlamentares representavam 5,4% do gasto com
despesas discricionárias do governo, e em 2022 passaram a ser 24% do valor de tais
despesas.
O STF não decretou a
inconstitucionalidade das emendas do relator, mas sim a inadmissibilidade da
forma secreta, exigindo que houvesse transparência, o que não foi observado
pelo Congresso, que passou a utilizar o disposto no art. 166-A da Constituição,
incluído pela Emenda Constitucional n.º 105 de 2019, de iniciativa do PT.
Segundo esse artigo: “As emendas individuais impositivas apresentadas ao
projeto de lei orçamentária anual poderão alocar recursos a Estados, ao
Distrito Federal e a municípios por meio de transferência especial, com o
repasse de recursos diretamente ao ente beneficiado, sem celebração de
convênio”. Dispensada qualquer prestação de contas, a verba é repassada ao
Estado ou município e destinada a programas à escolha destes.
Estas emendas, designadas
Emendas Pix, foram suspensas por liminar nas Ações Diretas de
Inconstitucionalidade (Adins) interpostas pela Associação Brasileira de
Jornalismo Investigativo (Abraji) e pela Procuradoria-Geral da República (PGR)
– respectivamente, Adin 7688 e Adin 7695. Segundo a PGR, as Emendas Pix
contrariam a separação de Poderes, os princípios da moralidade e publicidade e
a competência fiscalizatória do Tribunal de Contas sobre os recursos
repassados, solicitando que se declare inconstitucional o art. 166-A, I § 2, 3
e 5 da Constituição.
As Emendas Pix não se
encaixam no Plano Plurianual nem nas Diretrizes Orçamentárias, pois a aplicação
dos valores fica ao alvitre dos Estados e dos municípios. Portanto, a
inconstitucionalidade não está apenas na falta de transparência, mas na
pulverização de recursos em bens e serviços alheios à programação
governamental.
Em seguida, contudo, o STF
abre mão da função precípua de guardião da Constituição ao desistir de declarar
a inconstitucionalidade de norma inconstitucional, promovendo conciliação do
inconciliável graças ao cumprimento de condições para ser aceitável a afronta à
Constituição.
A Suprema Corte tenta
superar a inconstitucionalidade pelo atendimento dos requisitos excepcionais da
transparência e da rastreabilidade (art. 163-A da Constituição), ao mesmo tempo
que admite ficarem estas Emendas de Transferência Especial, Emendas Pix,
mantidas, com impositividade, observada a necessidade de identificação
antecipada do objeto, a concessão de prioridade para obras inacabadas e a
prestação de contas perante o Tribunal de Contas da União.
É um arranjo para evitar
crise entre Poderes, um jeitinho ao preço de renunciar à sua missão
constitucional, pois deixa de declarar a inconstitucionalidade do art. 166 A,
I, § 2, 3 e 5 da Constituição, que seria decidida no exame de mérito, agora
prejudicado pela admissão, em sala de conciliação, de acordo mediante o qual se
mantém a eficácia do art. 166-A, sujeita a algumas condições, como assinalado.
Com receio de açular o
confronto entre Poderes ao reconhecer a inconstitucionalidade, acaba-se por
legitimar inusitado desvirtuamento do Orçamento pelo Legislativo.
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