Os ministros do Supremo Tribunal Federal condenam os mensaleiros, denunciam a
corrupção e caem nas graças dos brasileiros, carentes de referências éticas
Hugo Marques e Laura Diniz
O menino Joaquim Barbosa nunca se acomodou àquilo que o destino parecia lhe
reservar. Filho de um pedreiro, cresceu ouvindo dos adultos que nas festas de
aniversário de famílias mais abastadas deveria ficar sempre no fundo do salão.
Só comia doces se alguém lhe oferecesse. Na última quarta-feira, o ministro
Joaquim Barbosa, 58 anos, apresentou seu voto sobre um dos mais marcantes
capítulos do julgamento do mensalão - o "last act (bribery)",
"último ato (suborno)", como ele anotou em inglês no envelope pardo
que guardava o texto de sua decisão. Além do português, Barbosa domina quatro
idiomas - inglês, alemão, italiano e francês. Pouco antes da sessão, o ministro
fez uma última revisão no texto. Cortou algumas citações, acrescentou outras e
destacou trechos. Não alterou em nada a essência da sua convicção, cristalizada
depois de sete anos como relator do processo. Durante mais de três horas,
Barbosa demoliu a defesa e as esperanças dos petistas José Dirceu, José Genoino
e Delúbio Soares, mostrando como eles usaram dinheiro desviado dos cofres
públicos para subornar parlamentares e comprar o apoio de partidos políticos ao
governo Lula. Exaurido pela dor nas costas que o martiriza há anos, o ministro
anunciou seu "last act" no mesmo tom monocórdio com que discorreu
sobre as provas: condenou por crime de corrupção ativa Dirceu, Genoino e
Delúbio, que formavam a cúpula do Partido dos Trabalhadores (PT). Dois ministros
acompanharam o relator e um aceitou em parte as teses da defesa. A votação
continua nesta semana, quando os seis ministros restantes vão revelar suas
decisões, mas o Supremo Tribunal Federal, o STF, já consolidou perante os
brasileiros o conceito - sem o qual uma nação não se sustenta - de que a
Justiça funciona também para os ricos e poderosos.
Ao apontarem o caminho da prisão para corruptos e corruptores, os ministros
do STF deram ao Brasil o alento de que a Justiça está aí para punir quem não
cumpre a lei, independentemente da cor da camisa ou do colarinho. Essa
percepção otimista tem levado muita gente a exprimir uma inusitada admiração
pelo Supremo Tribunal - uma corte até então distante, aparentemente inacessível
à grande maioria, mas imprescindível para a democracia. Desde que foram
anunciadas as primeiras condenações dos mensaleiros, os ministros, com raras
exceções, passaram a ser assediados nas ruas e a receber centenas de mensagens
de apoio e solidariedade. Joaquim Barbosa, que quando criança preferia não ir
às festas a ter de se submeter à humilhação de ficar separado dos colegas, é o
personagem mais visível desse embate que está impondo à corrupção uma
estrondosa derrota.
O ministro Joaquim é relator do processo do mensalão. Por ter coordenado
toda a fase de instrução do processo, é, em tese, quem conhece os mínimos
detalhes das mais de 50000 páginas de depoimentos, laudos, memoriais e
perícias. Seu voto, por isso, é diferenciado. Serve como bússola para os demais
ministros. Dos 38 réus acusados de integrar a quadrilha, 26 já foram julgados
e, destes, 22 acabaram condenados. Joaquim foi seguido pela maioria dos
ministros em 53 de um total de 58 votações. Oito políticos, três banqueiros e
vários empresários vão cumprir pena de prisão. Em Paracatu, no interior de
Minas Gerais, "Fritz" já era uma celebridade. Desde criança, Joaquim
trabalhou com o pai, ora ajudando a fazer tijolo, ora entregando lenha num
caminhão velho que a família adquiriu em um período de maior prosperidade. O
apelido germânico era uma troça dos colegas. O menino tinha alguns hábitos
considerados estranhos: lia tudo o que encontrava, escrevia no ar, cantava em
outros idiomas e gostava de andar com o peito estufado, imitando gente
importante. "Todos viam que o Joaquim seria alguém quando crescesse",
diz o tio José Barbosa, de 78 anos. "Choro muito de emoção quando ouço a
voz dele no rádio, no julgamento desse povo aí", ressalta. Que povo? O tio
não sabe direito. "São esses políticos aí...".
Dos tempos em que morou em Paracatu, o ministro guarda apenas memórias.
Imagem? Nenhuma. A família não podia gastar dinheiro com tal luxo. O único
registro que existe do menino Joaquim é uma foto 3x4 anexada a sua ficha de
matrícula no Colégio Estadual Antônio Carlos. Irascível, o ministro Joaquim
Barbosa também ganhou notoriedade por ter protagonizado debates para lá de
acalorados durante o julgamento. A postura muitas vezes agressiva do ministro,
vista com certa reserva até pelos próprios colegas da corte, ajudou a fixar a
imagem do cavaleiro disposto a enfrentar as resistências em busca de justiça -
um ato de bravura. Diz o professor Jorge Forbes, do Instituto da Psicanálise
Lacaniana: "As pessoas que vêm das camadas de exclusão social podem dar
menos atenção a satisfazer os pares, pois não têm muita esperança do
reconhecimento desses pares. Essas pessoas podem parecer imperiais, mas muitas
vezes não o são". Já existem milhares de citações na internet ressaltando
as virtudes heróicas do ministro Joaquim. Há duas semanas, o ministro atendeu,
no intervalo do julgamento, uma senhora que dizia ter viajado do Rio de Janeiro
a Brasília apenas para conhecê-lo. Chorando, ela elogiou o trabalho do relator.
"O ministro incorpora uma espécie de herói do século XXI. Precisávamos de
uma pessoa com o perfil dele para romper com os rapapés aristocráticos, pois
chegamos ao limite da tolerância com a calhordice no poder", diz o
antropólogo Roberto DaMatta.
O hoje empresário Joaquim Rath, amigo de infância do ministro, lembra que na
casa de adobe onde Joaquim Barbosa morava com os pais e mais sete irmãos não
havia sofá, geladeira nem televisão. Só uma mesa com cadeiras. "Mas com o
Joaquim não tinha essa história de negro humilde e pobre, e ele não se
subordinava aos ricos e brancos", conta. Em 2003, Joaquim Barbosa estava
em Los Angeles, nos Estados Unidos, quando recebeu uma ligação de Márcio Thomaz
Bastos - então ministro da Justiça e hoje advogado de um dos réus do mensalão -
informando-o de que seu nome estava sendo cotado para uma vaga no Supremo
Tribunal. O presidente Lula queria indicar um juiz negro para o cargo -
celebrado como o primeiro na história da corte. Joaquim era o nome certo. Não
tinha inimigos no PT e tinha currículo. Quando o velho caminhão do pai quebrou,
em 1971, a família resolveu tentar a vida em Brasília, que fica a 250
quilômetros de Paracatu. Na capital, Joaquim se formou em direito, foi aprovado
no concurso para oficial de chancelaria e depois em outro para procurador da
República. Fez doutorado na Sorbonne, em Paris, foi professor visitante na
Universidade Colúmbia, em Nova York, e na Universidade da Califórnia. Dois
meses depois da primeira sondagem, saiu a indicação de Joaquim Barbosa para o
STF. O ato foi assinado pelo então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu.
O ministro Joaquim intercala um estilo de vida simples com hábitos
sofisticados. Seu carro é um Honda Civic fabricado em 2004. É amante de música
clássica, adora Zeca Pagodinho e prefere os ternos importados. Ele mora em um
apartamento funcional e, controlado, consegue economizar metade do que ganha
(26700 reais). Atribui muito do seu perfil à influência da mãe, Benedita, uma
evangélica que há 45 anos frequenta os cultos da Assembleia de Deus. O pai
morreu há dois anos. O ex-jogador Dario Alegria, primo distante de Joaquim, lembra
que os garotos negros da cidade eram vítimas de um verdadeiro apartheid.
"Mas o Joaquim quebrou toda essa lógica, ele era diferente, nunca levava
desaforo para casa e não aceitava humilhação", diz. Das vinte conferências
e seminários de que participou nas últimas duas décadas, no Brasil e no
exterior, em quase todas abordou a questão racial e o direito das minorias.
Logo que Joaquim tomou posse, um amigo perguntou sua opinião sobre a polêmica
política de cotas. Respondeu o ministro: "Sem as ações afirmativas os
Estados Unidos não teriam um Barack Obama".
Joaquim Barbosa, pela posição que ocupa, é quem mais se destaca no
julgamento, mas coube ao decano do STF, ministro Celso de Mello, deixar clara a
disposição do tribunal de punir os mensaleiros e mandar um recado de
intransigência com as aves de rapina que dão rasantes sobre os cofres públicos.
"A corrupção compromete a integralidade dos valores que dão significado à
própria ideia de República, frustra a consolidação das instituições, compromete
a execução de políticas públicas em áreas sensíveis, como as da saúde e da
educação, além de afetar o próprio princípio democrático". Celso de Mello
foi duro e bem didático nas palavras. Ele disse que os réus do mensalão
formaram uma "quadrilha de verdadeiros assaltantes dos cofres
públicos" e comprometeram a República ao agir com "espírito de
facção" para obter privilégios. Um voto histórico num julgamento
histórico: "Este processo criminal revela a face sombria daqueles que, no
controle do aparelho de estado, transformaram a cultura da transgressão em
prática ordinária e desonesta de poder, como se o exercício das instituições da
República pudesse ser degradado a uma função de mera satisfação instrumental de
interesses governamentais e de desígnios pessoais", disse o decano. Essa
manifestação contundente, feita ao vivo na TV, diante de milhares de
telespectadores, serve de alerta aos poderosos acostumados com um quadro
secular de impunidade.
Na última década, o Ministério Público e a polícia até avançaram em
investigações de crimes de colarinho-branco, mas os resultados produzidos ainda
são risíveis. Em 2008, havia 409 corruptos e corruptores presos no Brasil, num
universo de quase 500000 detentos. No ano passado, o número subiu para módicos
632. Milhares de servidores, prefeitos e deputados são réus em ações criminais
por corrupção e em processos civis por improbidade administrativa. Mas são
casos paroquiais, com pouca divulgação e pequena repercussão. O bom exemplo,
como se sabe, deve vir de cima - no caso, do STF com seus réus de foro
privilegiado. "Ao condenar os mensaleiros, o Judiciário não está rompendo
um padrão de impunidade absoluta, mas está rompendo o padrão da impunidade de
quem tem sangue azul", diz o sociólogo Demétrio Magnoli. O julgamento
estendeu a notoriedade aos demais ministros do STF. Antes, o assédio a eles era
tímido, protagonizado basicamente por estudantes de direito e advogados. Agora,
os ministros são reconhecidos em restaurantes, aviões e até na praia. O decano
Celso de Mello até já posou para fotos com uma criança no colo a pedido dos
pais. "As pessoas comentam que o Supremo está projetando uma imagem que dá
muito orgulho aos cidadãos, na medida em que demonstra intolerância ao fenômeno
criminoso da corrupção. Este é um processo impregnado de alto valor
pedagógico", disse o decano.
O ministro Marco Aurélio tem recebido uma média de trinta e-mails sobre o
mensalão por dia no gabinete. É o dobro do que recebia antes do início do
julgamento. "Percebo que há um acompanhamento da matéria, o que revela um
avanço cultural da sociedade". Luiz Fux, Cármen Lúcia e o presidente do
STF, Carlos Ayres Britto, até mudaram alguns hábitos e estão mais reclusos,
para evitar acusações de que se tornaram vedetes. Fux não tem ido à praia e só
anda em carros com película nos vidros. Cármen viaja menos de avião, e Britto
sai menos para jantar fora. O ministro Lewandowski também está mais recluso,
mas por outra razão. Devido a seus frequentes votos pela absolvição de réus,
Lewandowski foi vaiado em um aeroporto e pediu reforço de segurança, por se
sentir ameaçado. "Parece que somos pop stars e heróis, mas somos apenas
servidores. Não estamos fazendo um justiçamento, mas julgando a partir da prova
e com respeito a todas as garantias constitucionais", diz Marco Aurélio.
Joaquim Barbosa vai assumir a presidência do STF em novembro. Quem acompanha
o julgamento pela televisão percebe que existe algo que incomoda o ministro
tanto quanto tentar cooptá-lo. A todo instante, ele troca de posição, troca de
cadeira, sai do plenário, transpira. Parece irritado. São as fortíssimas e
constantes dores causadas pela sacroileíte, uma inflamação na base da coluna.
Na quarta-feira, enquanto proclamava a condenação da cúpula do PT, o ministro
experimentou uma almofada elétrica importada que aquece e relaxa os músculos.
Não adiantou. O problema de saúde fez Joaquim abrir mão de uma de suas maiores
paixões: jogar futebol. Antes disso, ele passou a ser muito requisitado para
atuar em jogos disputados em campos desconhecidos, e isso o deixava
constrangido. Foi convidado diversas vezes pelo então presidente Lula para
participar de uma pelada com os convivas do Palácio da Alvorada, alguns deles
agora sob julgamento. Joaquim Barbosa nunca aceitou.
Fonte: Revista Veja
Nenhum comentário:
Postar um comentário