A aventura de editar Antonio Gramsci: entrevista com o editor e tradutor mineiro Luiz Sérgio Henriques, vice-presidente nacional da Fundação Astrojildo Pereira.
Como surgiu a ideia de editar um site voltado para o pensamento do marxista italiano Antonio Gramnsci?
O site tem uma origem curiosa: ele começou a nascer em Nápoles, em 1997, quando se realizava um congresso da International Gramsci Society. Estávamos presentes, entre muitos brasileiros, os três futuros organizadores das Obras de Antonio Gramsci, cujos 10 volumes sairiam nos anos seguintes, ou seja, Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e eu. O nome do site foi consensual: desde o começo não se quis engessar ou sacralizar Gramsci, mas estabelecer e até incentivar “usos” diferenciados daquele autor para entender a realidade brasileira, nossa cultura, nossa relação com o mundo. Atrás de nós havia uma comum experiência eurocomunista “à brasileira”, dentro do velho partidão da frente democrática, o que dava uma excelente base para o trabalho nas Obras e para levar adiante o site. Fiquei mais à frente do site por um motivo prosaico: talvez, na época, fosse o mais adiantado da turma em internet... Além disso, os donos do provedor Acessa, de Juiz de Fora, haviam me procurado meses antes para editar uma página de Política em sentido estrito. Ofereci, como contraproposta, a página Gramsci, e eles aceitaram imediatamente, ofereceram o desenho do site, os seus recursos técnicos, etc. Esta parceria dura desde o primeiro momento e posso considerá-la um êxito: até o design do site, como me escreveram uma vez, convida à reflexão serena, infinitamente superior ao espírito de propaganda e à retórica da repetição, enjoada e improdutiva mesmo quando se diz “de esquerda”.
Qual a contribuição que sites dessa natureza podem dar à cultura brasileira?
O “espírito da democracia” é por si mesmo plural: exige uma tentativa de aproximação permanente entre política e cultura, requer a contaminação entre diferentes tradições de pensamento e diferentes pensadores. Claro, abominamos a instrumentalização da cultura, que nunca leva a lugar nenhum, assim como acreditamos que a reflexão política, sem cultura, perde todo o vigor e se reduz, na melhor hipótese, à simples administração das coisas como são, sem projeto, sem esperança, sem futuro. No seu espaço limitado e na medida das suas forças, o site Gramsci procura pôr em prática este “programa”. Colocamos à disposição do leitor estudos sobre categorias básicas do pensamento de Gramsci, como hegemonia, revolução passiva ou guerra de posição, sem imaginar que elas bastem para explicar a complexidade brasileira, mas esperando que contribuam neste sentido.
Como você situaria o legado de Gramsci para o entendimento do mundo de hoje?
Esta é uma pergunta difícil, talvez a mais difícil das que você me fez... Em síntese extrema, diria que Gramsci, como político e filósofo da política, já teve evidentemente confirmado o estatuto de clássico do pensamento do século XX. Ninguém ignora que Gramsci era um comunista – mas um comunista herético, que ainda hoje não se deixa reduzir aos termos simplórios do marxismo-leninismo e requer leitura(s) que faça(m) justiça à sua sofisticação política e intelectual. Se considerarmos o conjunto dos Cadernos do cárcere, às vezes ali encontramos formulações historicamente datadas, que não o diferenciam de outros teóricos comunistas. Outras vezes, contudo, nos vemos diante de formulações audaciosas que captam aspectos essenciais da ação política: basta pensar na sua concepção da política como hegemonia, como consenso e política de alianças, e, nesta mesma linha, na sua original e pioneira sociologia dos intelectuais. Pode-se achar nos Cadernos uma história da modernidade capitalista e dos processos de democratização que ela contraditoriamente produz. Um dos aspectos mais interessantes, a meu ver, é que os Cadernos e as Cartas do cárcere são “obras abertas”, escritas e às vezes reescritas sem a intenção da forma definitiva. Acabam assim funcionando como um laboratório conceitual, que podemos frequentar como aprendizes ou estudiosos em busca de pistas para decifrar, pelo menos parcialmente, a tumultuosa época de transição que estamos vivendo.
O que esse site significa para você, após tantos anos de edição? Vale dizer, ele ainda reserva surpresas intelectuais?
Um site tão veterano como o nosso, com 15 anos ou mais de existência, viveu e vive momentos diversificados. Aos poucos, ele passou a ser um ponto de referência, trazendo elementos mais ou menos fixos, como uma utilíssima bibliografia e um léxico gramsciano que atraem bastante atenção. Também gradualmente, em termos de política cultural, site aproximou-se mais da área que considero ser a “esquerda democrática”, a qual, por definição, não pode estar ligada a um só partido, nunca. Num determinado momento surgiu uma oportunidade estupenda: a de editar livros. Fiéis à nossa inspiração, iniciamos uma coleção chamada Brasil & Itália, já com sete volumes publicados. Neste projeto editorial associamo-nos à Fundação Astrojildo Pereira (www.fundacaoastrojildo.org.br) e à própria Fundação Instituto Gramsci (www.fondazionegramsci.org), de Roma. E foi assim que saíram nestes anos mais recentes, sempre pela Editora Contraponto (www.contrapontoeditora.com.br), os livros da coleção, o último dos quais uma recentíssima biografia escrita por Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci, 1926-1937, leitura indispensável para os estudiosos deste campo. Creio que, no conjunto, temos seguido um lema de origem italiana, popularizado entre nós por Carlos Nelson Coutinho num brilhante ensaio do final dos anos de chumbo. Este lema – a democracia (política) como valor universal – dá o norte para o site Gramsci. Pessoalmente, é a única reivindicação que faço: a da obstinada coerência com este lema.
Fonte: Fundação Astrojildo Pereira
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