Há alguma chance de um cidadão ser vice de um governador tucano e ministro de uma presidente petista? É razoável alguém defender os interesses de um estado e, ao mesmo tempo, pensar em políticas nacionais e ser imparcial? Existe a mínima possibilidade de tal equação dar certo? Não, para as três perguntas. Apenas na cabeça de politiqueiros a ideia pode repousar, mas ela é improvável em qualquer debate sobre eficiência de gestão. É a prova de que os arranjos eleitorais sobrepõem qualquer estratégia de política pública, por mais desgastadas que tal expressão possa estar em círculos acadêmicos.
A decisão de convidar Guilherme Afif Domingos (PSD) — o cidadão da primeira frase deste texto — deve ter sido tomada por alguém disposto a manchar a fama de boa gestora da presidente Dilma Rousseff, só pode. É improvável que a presidente, ciosa de assuntos gerenciais, pudesse ser capaz de trazer para a Esplanada um político amarrado ao cargo de vice-governador de São Paulo. Ela, de antemão, saberia que isso não vai daria certo. É claro que há, aqui, uma provocação. Dilma aceitou o jogo e, literalmente, estendeu a mão para Afif beijar, com discurso esperançoso na gestão do novo ministro.
“Tem a boa burocracia, que é a regulamentação correta que o Estado tem que fazer, mas há a péssima burocracia, que ao invés de dar suporte ou ajudar a desenvolver, entrava”, disse Dilma, ao falar da expansão da pequena e micro empresa. Bela retórica sobre a administração pública. Uma releitura da frase presidencial bem que poderia ser: as regras são importantes, desde que elas não atrapalhem a eficiência da gestão. Para não ser pedante, Dilma evitou citar o pensador alemão Max Weber (1864-1920), um dos autores do conceito de burocracia — a partir de normas definidas e critérios de seleção de funcionários. Melhor evitar, de fato. O contraste com a posse de Afif seria absurda.
Dois senhores
Fiquemos então com a figura de Afif, o homem pendurado em cargos, a mais de 1000km de distância um do outro. E que diz querer acumular os dois, apenas largando o osso paulista com ordem da Justiça. Com o perigo de ser conhecedor profundo da commedia dell"arte, o novo ministro da Secretaria da Micro e Pequena Empresa decidiu fazer uma citação durante o discurso de posse. Deve ter buscado inspiração no dramaturgo italiano Carlo Goldoni, autor da comédia Arlequim, o servidor de dois patrões. “Eu não sirvo a dois senhores. Eu sirvo a uma causa com que os dois senhores concordam”, disse Afif. É difícil encontrar pontos em comum nos discursos de Dilma e Geraldo Alckmin. A não ser o fato de parecerem satisfeitos com a decisão em deixar o vice-governador-ministro nos postos. Isso não é lá uma causa, convenhamos.
De qualquer forma, Afif pode estar certo. Não é ele o personagem principal, a partir da analogia com a comédia italiana. O mais adequado seria eleger o próprio partido do político, o PSD, como o número um da peça, o arlequim. Ou melhor, trazer para o centro do palco o ex-prefeito Gilberto Kassab, o criador da legenda, o homem capaz de se passar por alguém sem ambições, mas que esconde, no estilo desleixado, a esperteza em pessoa. No bolso do grande paletó, Kassab tem um minuto e 34 segundo em tempo de rádio e TV para negociar, como um mascate. De petistas a tucanos, todos os adulam, quantos de fato gostam de verdade do camarada é outra história. Não existe amor na política, nem em SP ou em Brasília.
Esperteza
Por fim, na ficção, arlequim quer ser o esperto, mas acaba envolvido em trapalhadas ao aceitar trabalhar para dois patrões. Desajeitado, quer ganhar mais, faturando ora com um, ora com outro. Mais uma vez, é claro que isso mais cedo ou mais tarde não vai dar certo. Uma hora, um dos patrões – ou os dois – vai desmascará-lo. Por mais que, ao contrário da comédia italiana, os senhores do arlequim já tenham sido informados de toda farsa desde o início.
Talvez um conhecedor profundo da commedia dell"arte, o novo ministro decidiu fazer uma citação durante o discurso de posse. Negou ser um servidor de dois senhores. Mas, ao contrário da ficção, Dilma e Alckmin sabem da farsa de Kassab e do PSD desde o início
Fonte: Correio Braziliense
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