Na próxima quarta-feira, o Brasil exuma pela primeira vez os restos mortais de um ex-presidente da República. O corpo de João Goulart deixa o jazigo onde repousa há quase 37 anos, em São Borja. A mobilização em torno da causa da morte de Jango é cercada por contornos políticos, ideológicos e históricos.
Operação com aparato de segurança, avião presidencial, peritos de quatro países e laboratórios estrangeiros, a maior exumação realizada pelo Estado brasileiro pode terminar sem conclusões.
Mais do que esclarecer se João Goulart foi vítima de ataque cardíaco ou envenenado por agentes da repressão, em dezembro de 1976, está em curso uma tentativa de reescrever a História do Brasil.
As incertezas sobre o desfecho da exumação começarão a ser desfeitas em Brasília, quando for aberto o esquife do ex-presidente, deposto pelo golpe militar de 1964. Até lá, as condições do corpo e o sucesso dos exames toxicológicos não passam de especulações. Passados quase 37 anos da morte, é possível que não haja resquícios ou tecnologia suficiente para encontrar as substâncias que poderiam ter eliminado Goulart.
Apesar da falta de provas documentais, Ministério Público, Comissão Nacional da Verdade e Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República consideram consistentes os relatos de envenenamento. Historiadores divergem, mas apoiam a exumação, pedida pela família. Todos comungam de uma opinião: o país tem o dever de, ao menos, tentar elucidar o caso.
– Há comprovação objetiva e documental de que o ex-presidente Jango foi monitorado e perseguido na Argentina e no Uruguai – justifica a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário.
A decisão do governo federal, que concederá enterro com honras de chefe de Estado a Goulart, recebe críticas, em especial de setores conservadores. Teria viés eleitoral, a favor de Rosário e dos herdeiros de Jango, com suposto interesse em indenizações internacionais. Contudo, o cerne da polêmica fica na queda de braço entre direita e esquerda para reescrever a História.
Desde o golpe, adjetivos como "fraco" e "comunista" e uma suposta vontade de instaurar uma ditadura sindicalista no país pontuam a biografia do líder trabalhista. Na última década, pesquisas, livros e documentários, como O Dia que Durou 21 Anos, tentam reconstruir sua imagem, processo aditivado pela exumação. Temas como as reformas de base propostas por Jango voltam ao debate público. De ameaça vermelha, Jango passa a figurar como mártir da democracia.
– Os militares construíram sua versão da história. Agora, o atual governo, mais ligado aos militantes de esquerda, tenta fazer os seus ajustes – analisa o professor Luiz Antonio Dias, chefe do Departamento de História da PUC-SP.
Dias está entre os acadêmicos que tentam derrubar crenças negativas em relação ao gaúcho. Baseado em pesquisas do Ibope feitas em março de 1964, o professor é categórico ao dizer que Jango e suas reformas de base tinham apoio popular, inclusive em São Paulo:
– Se pudesse concorrer à reeleição, o que era proibido, provavelmente Jango venceria.
Um presidente social-democrata
Estudiosa do trabalhismo e professora da UnB, Lucília de Almeida Neves Delgado refuta as acusações de que Jango era comunista. Hoje, ela o definiria como social-democrata. Há 50 anos, ele já defendia temas atuais, como o ensino médio profissionalizante e incentivos para habitação popular, além das reformas de base, em especial, a agrária.
– É uma injustiça acusar Jango de inépcia ou comunismo. É um discurso construído por quem o depôs em uma tentativa de justificar a intervenção na ordem democrática – diz ela.
Fonte: Zero Hora (RS)
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