- Valor Econômico
Adolf Eichmann foi o oficial nazista responsável pela logística que encaminhou milhões de pessoas (a grande maioria judeus, mas também ciganos e outras minorias) para campos de concentração, onde seriam exterminadas. Em sua defesa, num tribunal de Jerusalém, alegou que apenas cumpria ordens atinentes a seus deveres de funcionário, seguindo burocraticamente a lei e não sendo assim responsável pelo trágico destino dos prisioneiros. Em sua clássica análise do julgamento, Hannah Arendt cunhou a ideia da "banalidade do mal", ou seja, de sua perpetração irrefletida por indivíduos que supõem apenas dar seguimento a atividades corriqueiras.
Apesar da sociologicamente instigante percepção de Arendt (muito criticada), a defesa de Eichmann não foi aceita, pois não era plausível que diante de tamanho mal o funcionário não fosse capaz de perceber a gravidade de suas decisões e, portanto, não se responsabilizasse por elas. Ele foi condenado e executado.
Tal exemplo extremo é útil para levantar a seguinte questão: pode um servidor público, diante da evidência cabal de um malfeito, dar-lhe seguimento sob o argumento de que apenas cumpre ordens, ou assegura a "continuidade administrativa"?
Funcionários públicos de perfil burocrático são basicamente garantidores do cumprimento de rotinas. Seu dever é assegurar que as políticas decididas pelos governos sejam implementadas, mesmo que porventura discordem delas. Não fosse assim, servidores poderiam boicotar ações governamentais legitimadas pela escolha eleitoral, violando burocraticamente a democracia. Tal raciocínio apenas é válido, contudo, quando tais políticas se mantiverem no âmbito da legalidade - afinal, é possível que se discorde de uma política sem que ela seja ilegal, apenas em função de preferências (técnicas, políticas, ideológicas, teóricas, de interesse etc.). Entretanto, havendo ilegalidade, é dever funcional do servidor obstaculizar a ação.
Bons funcionários são aqueles que, percebendo a incorreção de uma política, alertam seus superiores. Foi, aliás, o que fizeram os técnicos do Tesouro Nacional em 2013 - como revelado em matéria de Leandra Peres no Valor de 11 de dezembro. A matéria observa, a propósito, que no Tesouro havia "desconforto... em assinar pareceres que contrariavam a opinião da área técnica, que receava os riscos jurídicos de subscreverem documentos que davam guarida a mágicas contábeis". Como se nota, as advertências foram em vão e hoje o governo paga o preço de sua incúria. Registrado o alerta e a recusa dos dirigentes com responsabilidade política em considerá-lo, os servidores mantiveram a disciplina burocrática e calaram-se - em parte por medo. Não deveriam tê-lo feito.
Se já é altamente questionável que um funcionário burocrático dê sequência a procedimentos ilegais, o que dizer de um funcionário político (portanto, com responsabilidades de natureza política, que vão além da mera garantia às rotinas)? O que dizer então se tal funcionário for um indivíduo versado em questões jurídicas, professor de direito e até mesmo autor de livros nessa área? Poderia ele alegar o cumprimento banal da rotina administrativa, de modo a não perturbar o andamento das coisas conforme ao que foi determinado pelos altos dirigentes de sua organização?
Pois é essa a situação do vice-presidente da República, Michel Temer. Ele assinou decretos que liberaram créditos de R$ 10,8 bilhões sem autorização do Congresso - as assim chamadas, "pedaladas fiscais". A esse respeito, foi isentado de responsabilidade pelo procurador do Ministério Público no Tribunal de Contas da União, Júlio Marcelo de Oliveira, para quem o vice-presidente e outros na linha sucessória, "não participam da alta administração, não exercem papel diretivo no poder Executivo, não designam a equipe de governo, enfim, não fazem a gestão do país". Isto, apesar do vice ter chefiado a articulação política neste ano e, como ficou ainda mais claro em sua famosa carta, ter indicado diversas pessoas para cargos no governo.
O procurador ainda afirmou que "seria incongruente com a realidade e a natureza das coisas exigir que o substituto meramente eventual e interino tenha pleno domínio ou ciência dos assuntos de rotina que lhe são apresentados a despacho". Ora, mas se a ilegalidade das "pedaladas" é algo tão patente e grave que justifica até a mais drástica das medidas no presidencialismo (o impeachment), como poderia passar desapercebida por um agente político tão douto em questões jurídicas? Como poderia ele simplesmente dar seguimento - banalmente - a essas medidas, sem obstaculizá-las em prol da legalidade e da responsabilidade fiscal?
O próprio procurador, em entrevista à BBC em setembro, considera que a rejeição das contas (com base nas "pedaladas") "seria um fundamento jurídico" para o impeachment, mesmo se tratando de uma questão a ser politicamente escrutinada pelo Congresso. Mas se é coisa tão grave, como desculpar a quem lhe endossou, sob a alegação de que agiu motivado apenas "por lealdade institucional e continuidade administrativa", como se fosse um mero burocrata? Ora, neste caso, os próprios burocratas foram mais prudentes, alertando ao governo de seus erros.
Incongruência de fato parece haver entre a gravidade da transgressão e a não responsabilização de quem lhe subscreveu. Como se pode, por um lado, defender-se que "pedaladas" são suficientemente graves e evidentes para constituírem "fundamento jurídico" do impeachment e, por outro, considerar que são "assuntos de rotina" passíveis de passarem desapercebidos a um expert em questões jurídicas que participava ativamente do governo, articulando em seu nome junto ao Congresso?
Nunca é demais lembrar que assinaturas de agentes políticos são suficientes para responsabilizá-los juridicamente. Temos casos de indivíduos que foram condenados basicamente por conta de uma assinatura. Como seria possível neste caso entender que o mesmo princípio não se aplica? Além de uma incongruência, teríamos aqui uma grande assimetria.
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Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
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